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25 novembro 2020

Racismo na Droga Raia- Tijuca


             Era pra ser um dia normal, mas eu sou negra!

O autor Ta-Nehisi Coates no seu livro Entre o mundo e Eu. Escreve para seu filho de 15 anos explicando que por ele ser negro as suas experiências de vida seriam completamente diferentes para as pessoas de grupos raciais diferentes.

Ahhh Roseane, mas raça nem existe. Melhor! Só tem uma, a raça humana.

A raça não é uma condição biológica, mas uma condição social, psicossocial e cultural que foi criada, reiterada e desenvolvida na trama das relações sociais, já nos dizia Octavio Ianni.

Os meus traços fenótipos, os meus traços raciais como meus lábios grossos, minha bunda grande, meu cabelo crespo, e a cor retinta da minha pele fala de mim sem que seja necessário que eu abra a boca. O meu corpo é um discurso. Para a supremacia branca (dos supostamente brancos do Brasil) o meu corpo é uma ameaça. Não é preciso absolutamente nada. bell hooks nos chama para refletir, a construção racial que fizeram do nosso corpo foi para que o mundo abertamente sentisse ódio e medo de mim. 

Eu estava tendo um dia de rotina, acordo às 5 horas da manhã com os primeiros raios de sol e os cantos dos passarinhos, molho as plantas e faço um chá pra iniciar minha rotina de estudos e escrita. Mas ontem tive que sair de casa, consulta com oftalmologista e uns assuntos pessoais pra resolver. Como estou em processo de construção de uma rotina de auto cuidado, eu conto com o apoio das amigas pretas. Uma das minhas maravilhosas me indicou um protetor solar com o valor de 17,49.

Como iria no médico praça Saens Pena, passei na Drogaria Raia que fica na rua General Roca, 661-C, Tijuca. 

E então sou arremessada para o mundo onde a supremacia branca determina que seja o meu. Ao colocar o primeiro pé na loja o segurança, um jovem branco aumenta a voz e dispara uma “boa tarde”. Para quem não sabe, essa é uma estratégia de treinamento de muitas lojas. Pessoas “racialmente perigosas” tem que saber que foram notadas, que a sua presença no espaço físico da loja está em observação, isso inclui os boa tarde de segurança, as jovens que oferecem cartão de crédito, as funcionárias que vem oferecer ajuda em loja de auto atendimento. São determinações da loja, alertar ao “suposto meliante” que ele foi visto.

Respiro e sigo atrás do eu produto e o encontro. Entro em uma fila e vejo uma prateleira de promoção de esmaltes. Eu amo pintar unhas e vi um esmalte verde. Na hora me veio memória afetiva boa, poxa eu nunca havia pintado as unhas de verde, poderia ser engraçado então por 7 reais topei ter a experiência e peguei esse produto também. Ao chegar na minha vez de pagar, a atendente do balcão que estava atrás do seu computador me informa que eu estou na fila errada, que aquela fila era para as pessoas que vão solicitar medicamentos e que o caixa fica do outro lado loja. Quando vou pegar meus produtos a atendente recolhe o protetor e o esmalte e coloca na bolsa de proteção da loja que tem um lacre que só o caixa pode abrir. 

Imediatamente eu perguntei a funcionaria o motivo do procedimento, a mesma desdenhou da minha pergunta e disse que não era nada demais, que era para me “ajudar” na hora de ir ao caixa para eu não ficar com as coisas nas mãos. Eu insisto e aponto para um cestinha de plástico que é oferecida aos clientes em compra na perfumaria perguntei por que pra mim tem que ser lacre e para aquela senhora é um cestinha? 

A atendente me olha com uma cara de absurdo e vai ao caixa retirar o lacre e me devolve os produtos fora de um cestinha, e com muita raiva. Solicito conversar com a gerente. A gerente teve uma ação pior do que a da vendedora, disse que o procedimento é padrão e que eu estava colocando palavras em sua boca, que a atendente não havia cometido racismo, que ela mesma não era racista. 

Perguntei a função do lacre e ela me disse que seria uma proteção adicional para prevenção de furtos já que a loja já conta com segurança, câmeras, os atendentes. Esse era um procedimento para produtos especiais. Aí eu perguntei quais produtos estão no protocolo para serem lacrados, ai ela disse que todos os medicamentos do balcão.

Nesse momento eu perguntei novamente: se eu não comprei remédio, se eu não pedi informação de remédio, se eu não falei em nenhum tipo de produto desse balcão, se na loja há cestinhas para compras na perfumaria, se eu errei a fila e perguntei onde era a fila correta. Qual foi o critério que ela usou para recolher da minha mão e lacrar um esmalte e um protetor solar? 

Por fim uma advogada que assistiu toda a cena me deu o contato dela caso eu precise de testemunha. A vendedora com a gerente na sua empáfia e um olhar de autoridade determinou ali que EU era a pessoa errada e que NÃO houve uma situação de racismo. 

Os RACISTAS são assim, eles tentam transferir a culpa para as vítimas.

Nisso, eu fiquei muito chateada, não consegui me alimentar direito, a dor física veio em forma de dor de cabeça, minha concentração foi embora e não pude continuar meus estudos nesse dia, não tive alegria para ver um filme, não consegui se quer ouvir uma música, perdi uma reunião. Fiquei sozinha no meu luto porque a vida de mulher negra retinta é assim. 

E eu só queria um protetor solar, eu só queria cuidar de mim...

 

21 novembro 2020

Carta a Zumbi de Palmares.



Oi Zumbi, como vai essa força? Eu queria lhe render homenagens ontem, mas não consegui! Até que tentei, fui até o seu monumento na avenida Presidente Vargas e o nosso povo estava lá, mas meu coração não estava. 

Sou grata Zumbi, a tudo que você representa, por favor não me entenda mal.

Eu vou te contar algumas coisas bem pessoais tá, coisas que me alegram muito. Sabe o 20 de novembro? Pra mim já era dia de festa bem antes de eu saber sobre você. No Brasil é assim né, eles escondem o jogo pois informação é poder.

Eu já cheguei a pensar que 13 de maio me representava, mas era tudo mentira. Mas deixa eu te contar os meus babados, tenho certeza de que você vai gostar. 

O dia 20 de novembro na minha família é a abertura de uma tríade de aniversários: 20 é o dia da minha prima/irmã, 21 da matriarca que hoje celebra do Orum e dia 22 do meu primo/irmão. Nas minhas memorias afetivas, lembro dessa semana com muita alegria. Família reunida, comida boa, um bom samba e cerveja gelada. Até que um dia me falaram de você. Eu quero era órfã de herói, me senti acolhida. Sabe quem me contou? Foi o bonde do Frei David, lá no final da década de 80.  Eu ia pra São Joao de Meriti e fazia coreografias Afro nas missas do Frei. As roupas de tecidos africano, modelos originais, quem me emprestava era a saudosa tia Cacilda, uma Yalorixá com o coração do tamanho do mundo, uma mulher firme, grande conselheira que adorava me enfeirar com as roupas “da macumba” pra eu ir dançar na missa. Eram turbantes coloridos e batas africanas que me emponderavam enquanto mulher negra. Lembranças boas.

Mas nos doas de hoje temos de tudo, incluindo a tolice de alegar que você é de esquerda. Pessoas desonestas sabe. É só pesquisar direitinho que da pra descobrir que o movimento dos negros no Brasil em pró de sua liberdade, começou desde a chegada do primeiro grupo que foi sequestrado em África. Na verdade, nem precisaram colocar os pés aqui, na travessia do atlântico eles já estavam criavam os seus atos de resistência. E agora estão divulgando que nessa época havia divisão política no Brasil de direita e esquerda.

Eu nem sei se rio ou se choro porque a esquerda nem liga pra gente. Nos chamam de indentitários, nos acusam de diluir a luta de massa que pra eles é a luta de classe. Racismo pra esquerda é algo secundário. 

Mas vamos voltar a falar de coisa boa. Sabe outras memórias que tenho do seu dia? Os blocos Afro Dudu Odara e Orumnilá. Novembro, a concha acústica da UERJ transbordava em tambores. E era assim seu dia, sua semana o seu mês. Recheado de festa e de alegria. 

Mas esse ano eu fui interrompida. 

Na véspera do seu dia, ao invés de eu lembrar das tias cortando legumes e carnes para fazer o almoço do dia seguinte, ao invés de lembrar do meu pai e tios juntando cascos de cerveja nos engradados para providenciar a compra da bebida, fui interrompida por uma terrível notícia.  João Alberto Silveira Freitas de 40 anos, foi espancado até a morte na frente de sua esposa, lá na cidade de Porto Alegre. 

Eu fui burra e cometi um erro, assisti ao vídeo do assassinato. Eu sei que não tenho peito pra isso, mas me atrevi. Os gritos ainda estão assombrando a minha mente, as imagens dos socos na cabeça ficam flutuando como se fosse um filme. 

Não estavam matando Joao, estavam matando a nós negros. 

O corpo negro é tolhido de qualquer tipo de subjetividade e João ousou agir de forma não autorizada pela supremacia dos supostamente brancos do Brasil. O corpo negro não pode olhar nos olhos porque é afronta, o corpo negro não pode gargalhar porque é irresponsável, o corpo negro não pode dançar que está pedindo sexo, e o corpo negro não pode ficar descontente e afrontar, não, isso não, isso nunca! Quem tenta questionar, criticar, impor a voz para pedir uma solução para algo, tem a morte como resposta. Que ousadia é essa? Como assim corpo negro quer tirar a simbólica máscara de flandres para falar? Não! Esse é o limite dos limites.

A imagem da mulher branca de pé, filmando e gozando do momento de dor e morte do corpo de um homem negro é a perpetuação do nosso sofrimento em diáspora. Ela percebeu que estava sendo filmada e foi ameaçar a pessoa que teve estômago e coragem de registrar. “Não faz isso que eu vou te queimar na loja, disse a branca para o suposto funcionário registrava as imagens.  

Lá nos Estados Unidos em 1955, aos 14 anos Emmet Luis Till foi assassinado por homens brancos após ser acusado de assoviar para uma mulher branca. Sabe a branca? O nome dela é Carolyn Bryant e ela admitiu 60 anos depois que havia mentido. Mas assassinos já haviam sido absolvidos muitos anos antes.  O segurança que matou o jovem no supermercado extra em 2019 teve uma fiança de 10 mil reais paga em menos de 24 horas estava em liberdade. Quem pagou?  Thomas Lane, um dos quatro agentes envolvidos na morte de George Floyd durante abordagem policial em Minneapolis, foi solto após fiança de US$ 750 mil dólares e deixou a prisão. Quem pagou? 

Enfim, assassinos de corpos negros têm poderes invioláveis. 

            Bom Zumbi eu só vim me explicar, não esqueci de você não, queria postar uma foto bem linda, de turbante, punhos cerrados, com o sorriso por debaixo da máscara. Mas vai ficar pra próxima. 

Está doendo muito ainda. Mas eu vou me levantar. 

Até lá

 

Roseane