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26 dezembro 2020

Memórias da Plantação - Episódios de racismo cotidiano

             







            Para a mulher negra, a escrita é um ato de transformação. Segundo Grada, é onde ela não é a Outra e sim ela mesma. Se negar a ser objeto e se protagonizar enquanto sujeito. É um ato político! É oportunidade de se opor ao colonialismo e dizer não ao lugar do Outro.

O livro descreve o racismo atemporal, cotidiano, naturalizado, romantizado, entranhado nas nossas relações sociais. As plantações, que no caso do Brasil podemos exemplificar pelos canaviais, as explorações de minérios, são locais sistematizados para a exploração colonial.

Para falar sobre a máscara de flandres foi usado o famoso retrato de Anastácia. Há que diga que a função da máscara seria para impedir a alimentação. Mas Grada traz a tona a reflexão de que era pra evitar que a mulher negra falasse. 

Foto da Internet

       

            Para o colonizador tudo lhe pertence incluindo o alimento e a palavra. 

A fala da mulher negra desconcerta a estrutura social. Segundo os relatórios MEPCT/RJ (Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura), os agentes do Estado relatam a insatisfação em trabalhar em unidades de privação de liberdade destinado a mulheres. Local com 68% de mulheres negras os agentes prisionais as classificam como as que “falam demais” ou “reclamam demais”. As feministas hegemônicas nos acusam de não integrar a pauta maior que é a luta de classe e atestam que “falamos demais” sobre racismo. Nossos pares nos abandonam quando conseguem uma mobilidade social pois somos mulheres que “reclamam demais”. O estereótipo da mulher negra barraqueira é um dos mais difundido, ora o que seria o barraco se não uma denúncia? Não querem nos ouvir falar sobre colonialismo, do sexismo, do racismo, da violência... 


            Para o colonizador tudo lhe pertence incluindo o alimento e a palavra.

No processo de criação do Outro o branco projetou no corpo não branco tudo o que considera ruim e projetou em si próprio toda a positividade. Não se trata de um distúrbio moral ou psicológico, é tudo calculado, intencionado, decidido e projetado e com propósitos econômicos e sádicos. A construção do negro é fruto do imaginário do branco. Segundo a autora a alienação construída pelo banco faz com que nos identifiquemos com o herói branco e que rejeitemos os nossos iguais construídos como inimigo negro. Ao sujeito negro lhe é negado a viver/ser o Eu, e ele acaba vivendo como o Outro, definido pela supremacia branca. 

Negros são odiados enquanto raça e os detalhes da escravização, do colonialismo do racismo são as verdades que a máscara de flandres tenta ocultar. A imposição do silêncio é para que o branco não seja questionado sobre as suas criações/ações racistas. Reprimir a fala do negro é a forma do branco se proteger. Se falamos, a nossa versão a nossa realidade é colocada em dúvida. 

No livro é detalhado os 5 mecanismos de defesa do ego brancos: negação, culpa, vergonha, reconhecimento e reparação.

Para contextualizar a autora traz a teórica Gayatri C. Spivak que escreveu o tão famoso ensaio: Pode a subalterna falar? E Grada responde um sonoro NÃO!

O sujeito negro é descrito como incapaz de questionar os discursos coloniais. Patrícia Hill Collins, também citada no livro, fala dos argumentos da ideologia colonial de que grupos subordinados, os menos humanos, se identificam incondicionalmente com os grupos poderosos e não tem assim condições de uma interpretação válida pela opressão sofrida. Mas na verdade os grupos subalternizados, colonizados não são vítimas passivas e nem cúmplices dessa dominação. O livro rompe com a romantização do oprimido.

Na construção racista, os negros são descritos/classificados como desumanos, primitivos, brutos. A sua fala desqualificada, invalidada ou representada pelos brancos “negrólogos” que se intitulam especialistas em nós. 

O momento acadêmico vivido pela autora foi com violência racial. Várias foram as tentativas de fazer com que ela não produzisse conhecimento. A academia é colocada como guardiã de interesses políticos dos brancos e a interpretação dos negros feita a luz de outras perspectivas, que não a branca, é invalidada. A saga desde a inscrição até a conclusão do seu doutorado foi racialmente marcada. Regras modificadas para impedir a progressão para a etapa seguinte, sugestão para que ela escrevesse de casa e não usasse o espaço físico da universidade,   sem o crachá e enquanto mulher negra era a única em que a equipe de segurança a parava para se certificar se ela era realmente aluna.

Na dinâmica de hierarquia onde negritude significa “inferioridade” e estar “fora do Lugar” e a branquitude “superioridade” e “estar no lugar”, faz com que o corpo branco pode estar em todos os lugares e o corpo negro tem seus lugares específicos. 

O racismo é uma realidade violenta que está dentro das relações sociais. O negro vítima de racismo é desprovido de importância política e em caso de um ataque racista, há uma mobilização para compreender o agressor e uma omissão e desrespeito em relação a vítima. O branco se sente desconfortável com a visibilidade do racismo.


Tereza de Benguela 

A autora descreve três características do racismo: a construção da “diferença” tendo o branco como norma, as diferenças construídas são hierarquizadas e com isso naturalizada e por fim as obstruções descritas são acompanhadas por poder histórico, político, social e econômico então, grupos racializados não podem ser racistas nem performar o racismo pois o mesmo não detém poder. Esses grupos podem ser preconceituosos, mas racista não. 

Na Alemanha a autora fala da tentativa de evitar usar o termo racismo, sao eles a  preferência para o uso de termos como xenofobia. No Brasil a todo momento tentam classificar o racimo como bulling.

O branco tenta naturalizar o seu racismo omitindo a historicidade da opressão. Lê a si próprio como “civilizado” e “decente” e o sujeito negro como: Infantil, primitivo, incivilizado, animalizado e erótico. 

Para a construção da tese de doutorado, Grada entrevista algumas mulheres de descendência africana e transcreve na pesquisa a experiência de três delas e suas próprias experiências com o racismo. 

Quando com 12 ou 13 anos foi a um médico, no término da consulta esse homem banco a “convidou” para ser empregada de sua família durante as férias. Por ele ser branco e ela uma criança negra a relação de médico paciente transformou-se em senhor e sua escrava devido  cor da pele. Uma menina branca em uma consulta médica dificilmente seria convidada para ser empregada de uma família de 4 pessoas durante suas férias escolares. Essa experiência no Brasil é naturalizada, uma criança, uma menina preta a partir dos seus 5 anos de idade já é lida como uma possível trabalhadora doméstica. O racismo também é genderizado. 

Segundo Mirza, mulheres negras ocupam o terceiro espaço, uma espécie de vácuo as margens da raça e do gênero. A experiência com o racismo é única pois para a mulher negra o racismo não se descola do sexismo. Existe uma falsa sororidade por parte das feministas ocidentais quando elas tentam colocar no mesmo grupo a si própria que enquanto brancas são herdeiras de privilégios do escravismo e colonialismo e mulheres negras herdaram dor e expropriação da própria humanidade. Homens negros não gozam de todos os privilégios do patriarcado.

A forma como a mulher negra experimenta o mundo é racializada. As pessoas se sentem autorizadas por exemplo a tocar em seus cabelos, sem constrangimento perguntam como mulheres negras higienizam o cabelo, estar com o cabelo crespo é considerado um ato de rebeldia pois o cabelo crespo foi usado para justificar a subordinação dos sujeitos negros, é usado como marca de servidão e colocado como símbolo de primitividade, desordem, inferioridade e não civilização, associam o cheiro da mulher negra a animal como macaco.

O relacionamento interracial não é símbolo de segurança. O sadismo racial é mais forte e em tons de “brincadeira” a relação de hierarquia racial se mantém. Piada racista são expressões do racismo que necessitam do consentimento e cumplicidade do riso. 

O racismo constrói a mulheridade negra como doméstica assexual obediente e a prostituta primitiva sexualizada. Lélia Gonzales em seus escritos fala das categorias mulata, mucama e mãe preta para denunciar como a mulher negra é representada no Brasil. 

Uma das entrevistadas fala de como ela era transformada em “sem cor” pelas pessoas brancas. Amigos diziam que na achavam que ela era negra. Era a tradução de um comportamento fóbico e uma negação do próprio racismo. Ao colocar a entrevistada como “sem cor”, invalida-se automaticamente toda violência racista que ela poderia relatar.

A palavra N não é neutra, trata-se de um conceito colonial inventado que significa primitividade, animalidade, ignorância, preguiça, sujeira, caos etc e esta ligado a uma experiência coletiva de opressão racial, brutalidade e dor.

O racismo leva ao suicídio. Mulheres negras experimentam níveis de solidão que vão muito além da rejeição da possibilidade de um relacionamento romântico pautado na responsabilidade afetiva. O vazio causado pelo isolamento e não pertencimento a nenhum espaço é adoecedor. Para o colonizador o suicídio é algo inadmissível é a decisão do sujeito negro do que fazer com a própria vida, é um ato subversivo dentro da dinâmica racial. A comunidade escravizada era punida caso cometesse suicídio, o branco não queria perder “mercadoria” e não queria que negros se tornassem sujeitos.

O trauma colonial é alimentado pelo racismo cotidiano. A todo tempo somos remetidos de volta ao sistema de opressão racial. A academia não estuda as consequências psicológicas sofridas pelo trauma racial. Os Africanos que ficaram em África e os que foram arrancados de seu continente para a diáspora tem um trauma histórico e coletivo, fruto da escravização e do colonialismo.

O livro fala da experiência do racismo na diáspora, das construções sociais produzidas e do quanto as vítimas do racismo são silenciadas no seu cotidiano. 

A autora Portuguesa estudando na Alemanha fala de experiências que são comuns na diáspora como no Brasil e Estados Unidos. Não falar sobre racismo que vivemos, é deixar uma ferida aberta sem a oportunidade de cicatrizar. 

Nunca fomos e nunca seremos passivos e coniventes com as opressões coloniais e vamos continuar falando. 


Grada Kilomba