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10 novembro 2018

O Tapete Voador

Cristiane Sobral é uma escritora espetacular. Tapete voador é um livro de contos onde a mesma fala de afeto, negritude, emponderamento, solidão, religiosidade, preconceito de cor e classe, colonização da estética da mulher negra, profissão, sexo, preterimento, maternidade, traição. Eu enquanto mulher negra retinta me identifico com a escrita da Cristiane,  são situações que mesmo não tendo sido vividas por mim e fácil enquanto mulher negra identificar o contexto.
O livro tambem aborda o colorismo, tema não muito discutido no Brasil, infelizmente. Confesso que me causou desconforto um conto chamado “A discórdia do meio”. O conto fala da brigas de dois meio irmãos onde a irmã mais velha, mulher negra retinta maltrata de forma cruel e injusta o meio irmão fruto de uma traição e que vem a ser um homem negro de pele clara, o conto destaca as ‘maldades’ da irmã retinta e a ‘paciência/benevolência’ do irmão de pele clara, até que ele não aguenta mais e reage.
Em um país onde a falácia da democracia racial impera, a negritude não é debatida seriamente, escolas se omitem a dar verdadeiras informações sobre a história do negro e da África antes do período da escravidão ,a eugenia foi tratada pelo estado como “solução”… não estamos em tempo de deixar alguns questões para serem sub entendidas.
Pra mim, que estou em fase de estudo e auto descoberta da minha negritude, entendo perfeitamente que a irmã mais velha de pele retinta cabelo crespo escondido atras de aplique para alcancar aceitação social,provavelmente a partir do nascimento do irmão de pele clara , sofreu  uma enxurrada de preterimentos, mal tratos, comparações porque é assim que funciona.

Eu particularmente já sofri inumeras agressões de negros de pele clara que se diziam ‘da sala” e eu “da cozinha”, comparação de cabelo nem me fale. Tive queimaduras químicas no coro cabeludo porque o mercado entendia que a textura do meu cabelo, que sempre foi assemelhados a uma palha de aço precisava de uma transformação química forte. Agora que estamos em época de valorização da estética negra, as cacheadas de pele clara são as que estão no topo da situação, são as escolhidas pelos homens negros e homens brancos, são as capas da revista quando precisam de um negra para a cota da diversidade, estão nas novelas, ocupando cargos,  casando e tendo filhos… se for negro de pele clara e olhos cor de mel ou verde, a invisibilidade dos retintos se torna mais evidente e quando não debatermos isso com seriedade e sinceridade é porque alguém esta se beneficiando com a manutenção dessa estrutura. Como consequência desse processo  surge a raiva, muita raiva de ver cachos no nomes dos produtos e omitirem o termo crespo, de não ver nossos rostos retintos em lugares fora da subalternização, de não ver nossa largura de nariz, nossos traços negroides inegáveis . Essa irmã poderia ter vários tipos de reações, poderia fazer clareamento e pele e correr o risco de um câncer, poderia se calar, se silenciar e ser consumida por uma depressão e também poderai agredir, como descrito no conto. Infelizente o conto acaba mas a BRANQUITUDE que é o verdadeiro culpado não é citado diretamente . Não é briga de irmão, não é inveja e reação ao sistema estrutural de racismo que a branquitude nos submente e que temos que passar a falar em voz alta. Não e nossa culpa. Ninguém solta a mal de ninguém.

09 novembro 2018

Poemas da Recordação e outros movimentos

Turbilhão de emoções
As palavras de Conceiçao Evaristo tem um poder sobre mim que não sei explicar.

No livro Poemas da Recordação e outros movimentos chorei, sorri, me aliviei, refleti, amei. Sua conexão com o amor e com a dor transborda.

Os homenageados, a maternidade, a amizade, os nossos ancestrais, o casamento, a violência urbana, o banzo...

Preparem-se para se emocionar.

?Das acontecências do banzo brotará em nós o abraço à vida e seguiremos nossas rotas de sal e mel por entre Salmos, Axés e Aleluias? (Conceiçao Evaristo)
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Por favor, ninguém solta a mão de ninguém.

As bambas do Samba

Antes de comecar a falar do livro tenho que ressaltar a ausência de duas sambistas: Jovelina Pérola Negra e Leci Brandão. Não desmereco de forma alguma o trabalho, mas eu como mulher negra e sambista me senti órfão pela ausência desses dois ícones.

O livro é uma coletânea de textos organizados por Marilda Santana. A iniciativa espetacular de dar visibilidade e voz ao protagonismo da mulher negra no Samba me comoveu.  Não somos apenas requebros, cozinheiras e enfeite, somo voz, composição, autoria, direção, instrumentistas, empresária, empreendedoras…
O livro é separado por capítulos e cada um conta um pouco sobre uma sambista.
A parte I une mulheres negras retintas do reconcavo Bahiano, as autoras falam com maestria da vida de mulheres negras nascida no período pós escravidão negra e elas tem em comum o trabalho infantil (pelo amor de Deus NÃO ROMATIZEM ISSO, trabalho infantil é exploração de um sistema escravagista e capitalista, nenhuma criança deveria ir para beira do Rio lavar roupa de mulher branca para ajudar a por comida no prato dos irmãos). Dificuldade financeira, fome, humilhação, falta de acesso a educação formal, seca, abandono, preterimento.  A “Bahia para inglês ver” do tempo Carlista, vendia uma cultura de negros sem negros, a falácia da democracia racial nos mantinha em cativeiro. O samba de roda que é criação da mulher negra essa  cultura servia de acalanto para enfrentar tantas dores e dificuldades. A forma de dancar em círculo , a organização de cada um ter sua vez no centro destacando que o protagonismo é para todos (homens, mulheres, crianças, casados, solteiros...), a chance de falar em suas letras das suas dores e alegria. A música e a dança eram companheira dessas mulheres em suas comunidades principalmente no momento do trabalho como as Mulheres Quilombolas de Tijuaçu e Samba de lata. Era pra aquecer o coracao. Não era amadorismo, não era simples improvisação como tentam colocar toda a criação do negro, como se fossemos simples infantes com inspirações momentâneas. Não!!! As letras saiam do coração,  eram pensadas e refletiam o cotidiano árduo, as alegrias e as mazelas. O racismo esta presente em toda a trajetória dessas senhoras , desde a infância. O trabalho com o Samba foi desacreditado e quase sucumbe por falta de valorização de quem desqualifica toda a criação artística da população negra. A quem diga que Carolina Maria de Jesus não é escritora. Desses textos a curiosidade ferveu dentro de mim e assisti a vários documentários, li outros textos, enfim a minha sede pra saber mais sobre essas mulheres só aumentou. Dona Dalva de Cachoeira, Doutora Honoris Causa pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia é a coisa mais linda que existe nesse mundo, corram pra Cachoeira e tenham um dedo de prosa com essa griot.

Parte II do Livro
Primeiro eu gostaria de destacar que fiquei maravilhada com o trabalho de Juliana Ribeiro, a quem sempre fui fã e agora multipliquei meu amor. Juliana fala da trajetória de Clementinha de Jesus, nossa Rainha Quelé. Mulher negra, retinta, Quilombola, com voz e estilo incomparáveis porém foi negligenciada e tem o “inicio” de sua carreira aos 62 anos de idade. Quelé canta desde a infância, mas só teve reconhecimento já na terceira idade. Clementina nasceu em 07 de Fevereiro de 1901, Juliana deixa um questionamento em seu texto: “Porque uma carreira tao bela, própria e consistente, era tão desconhecida do grade público? Eu ouso responder: o grande publico é RACISTA. Não podemos mais camuflar os crimes da branquitude. Fiquei mega entusiasmada para saber mais de Quelé, assisti a alguns videos no youtube, ela com 70 anos, puxando as músicas na memória, uma simpatia sem igual.  Uma voz como a da Quelé sem o racismo teria mudado toda a trajetoria da sua vida.
O texto sobre Dona Ivone Lara é escrito por Fabiana Cozza, não e um texto acadêmico como o livro tem sido até o momento, é o relato de uma grande fã que teve oportunidade de gravar uma música com a Deusa, e depois de alguns anos tiveram alguns encontros musicais. Senti falta de saber mais da voz e da vida de Dona Ivone, grande ícone na luta pela Humanização do tratamento manicomial mas que ficou as sombras de uma médica branca.
Na parte seguinte a Marilda Santana fala do ABC do samba: Alcine, Bete Carvalho e Clara Nunes. Alcione , professora primária parte do Maranhão para o Rio de janeiro em 1968 passa a trabalhar em uma loja de discos e passa a compor o elenco musical das maiores e melhores boates do Rio de Janeiro. A autora faz uma descrição cronológica da discografia. Um dado que pra mim é muito importante, Alcione era enganjada nos projetos sociais da Mangueira.  Mulher preta sempre por nós, valeu Marrom.
Bete Carvalho, mulher Branca privilegiada, nascida e criada em ipanema, frequentava os apartamentos da zona sul para cantar o “adocicado” samba estilo bossa nova, vencedora de concursos, vendeu muitos discos, se lança nos subúrbios cariocas e com sua pele clara é acolhida com louvor, recebe o título de Madrinha do Samba (???) , na verdade eu sei e voces tambem sabem. Em entrevista diz que samba tem que ter “humor, tem que ter forma popular de falar mas com poesia e sofrimeto”. Não é falado nada em relação a luta antiracista da artista, luta pelos desprivilegiado, desigualdade social…madrinha.
Clara Nunes vai para o Rio morar no apartamento do Carlos Imperial. O samba foi a oportunidade. O samba recebeu essa cantora de pele clara de braços abertos. Segundo o livro ela era indecisa não sabia que estilo musical adotar então flertava com boleros, baladas, participação em filmes da jovem guarda. Consegue estréias ao lado deícones  como Vinicius e Toquinho. Colecionando privilégios passa a ser conhecida e soma parcerias com os mais famosos da época. Passa pela Mangueira onde é tratada com indiferença e então é apresentada a Portela que a recebe debraços  abertos. Se apropria da tradição afro brasileira de tal forma que a autora do livro relata que a mesma encrespa o cabelo com permanente, adota no visual com guias,  turbantes e roupas brancas. É indecisa na religiosidade passando por igreja catolica, centro Kardecista, ubanda, consulta regulares com vários babalorixá que falaram que ela era de Oxum com Xangô, depois outro disse que ela era de Ogun com Iansa. A autora relata que a mesma era obcedada por fenômenos sobrenaturais era dependente de consultas prévias de búzios, cartomantes antes de tomar decisões pessoais e profissionais, era insegura com o sucesso. Não sei pra voces mas pra mim parece uma mulher voluntariosa que pediria recontagem  de votos caso fosse candidata a algo e perdesse.

Terceira e última parte do livro fala de Carmem Miranda: Gente desculpa mas não tenho nada a dizer dessa portuguesa branca que exagerava nos gestos, viveu o processo eugenista do Brasil, era preterida nos Estados unidos por não ser uma Blonde girl. 
Elza Sorares e descrita por Regina Machado, assim como Clementina de Jesus tem uma voz incomparável a autora descreve com maestria os alcances dessa voz, fala da vida dessa mulher que passou por tudo e encarava tudo mesmo com medo, cantava a dor, o precoceito, a pobreza e a superação. Elza Soares é exemplo de mulher negra, e de um talento uma capacidade vocal que não se esgota.
O livro termina falando de Martinália, mulher preta poderosa, filha do nosso glorioso Martinho da Vila. A autora foi muito feliz na sua pesquisa. Martinália  canta, compõe e toca quase toda a família percussiva, relata que seu pai é sua maior referência mas que não tinha muita e da importância do trabalho do pai no cenário musical brasileiro. Não é sua culpa Martinália, o racismo não dorme quando a missão é o apagamento do talento de uma pessoa negra, mas seu pai enfrentou. Todos vamos enfrentar. Ninguém solta a mao de ninguém.

06 novembro 2018

Terra Negra

Cristiane Sobral e suas poesias em Terra Negra, escancara a beleza da mulher negra e indígena. 

Não se cala diante da violência e do racismo,  denuncia também a violência feita pelos nossos iguais. Nossos crimes? Ser pobre, ter pele preta, orientação sexual... 

Ela fala do tão super estimado falo, “afinal, pau não é coroa”. 

A infância, a maternidade, o amor, as páginas viradas, o aprender a dizer não ao que não te completa, a nossa solidão, nosso preterimento.

 A beleza de nossos traços negroide, seios, lábios carnudos, o nosso crespo, a nossa cor da noite.  Mas não somos apenas fetiche. 

A autora reverencia quem veio antes nós, a benção meus mais velhos . O beijo, o gozo, tudo faz parte de nós. “ Para comover uma preta como eu. Traga mais do que aquilo que o racismo te deu”.
Leitura maravilhosa que é pra ser repetida varias vezes, presente perfeito pra dar pra preta em processo de descolonização do seu ser. Palavras que doem, palavras que afagam, palavras que libertam. Boa leitura.

Estrelas além do tempo

Estrelas além do tempo não foi uma leitura muito fluida devido eu não ser da área de engenharia, física e matemática. 


Com um inesgotável estudo/pesquisa, a autora não poupou dados e informações técnicas frutos de sua investigação. Ao ler algumas resenhas no Skoob encontrei vários comentários de pessoas brancas insatisfeitas, alegando que um livro que conta a trajetória de algumas profissionais da Matemáticas fale muito de matemática(Risos).


 Mas não é a matemática que causa inquietude na branquitude. A autora revela o submundo da segregação racial nos Estados Unidos na época quando segregar era oficial.

Através de medidas afirmativas reivindicadas por Phillip Randolph presidente do maior sindicato negro onde exigiam abrir vagas de trabalho lucrativas, as mulheres negras conseguiram o emprego no laboratório Aeronáutico Langley Memorial.

Com essa leitura eu ampliei o meu olhar em relação a diáspora negra. Nascer em um país colonizador fez com que de forma muito relutante, os racistas da era Jim Crow tivessem que abrir espaço para mulheres geniais de raça negra, principalmente após elas comprovarem todo o seu talento. Nascer em um país colonizado faz com que “donos” de fazenda deixe o pasto secar, o gado morrer mas é inadmissível empregar a comunidade negra com condições de trabalho adequados, e para isso usam o estado e a religião cristã para justificar.

O homem negro quando inserido na engenharia aeroespacial sofre com o racismo mas tem ao seu lado o sexismo e o machismo.

Ao ler esse livro e ver que mulheres geniais, com provável QI absurdamente elevado são tolhidas de desempenhar suas genialidades me veio em mente, quantas Carolinas Maria de Jesus temos espalhadas no Brasil morrendo de fome e violência urbana.


A segregação forçou a comunidade negra se unir pois fora de seus espaços eles não eram aceitos de forma alguma. Clubes, grupos de igreja, escolas, bairros, restaurantes... toda uma vida social é organizada pelos negros para servir a comunidade negra. O estado, lógico, da as costas e não da nenhum tipo de apoio à essas comunidades. Chegam a fechar escolas para propositalmente não dar oportunidade de estudo a comunidade negra.


Os americanos não tem receio de falar em colorismo e no livro é destacado que as mulheres negras são de pele clara, o que com certeza de alguma forma possa ter “facilitado” o crescimento delas. Uma das mulheres de pele clara foi confundida com uma mulher branca que é um privilégio.

***ei vc de pele clara: mostrar foto do avô, da mãe, do tio pra provar que é negro É PRIVILÉGIO! Não de façam de bobos.

A era Jim Crow, o caso Brow, Martin Luther King, a personagem Nyota Uhura do star Trek são vários links de estudos que o livro nos proporciona.

Mulheres fantásticas, geniais  que ajudaram o homem ir a lua porem a mídia mostrou homens brancos no laboratório espacial durante a transmissão me faz lembrar de dona Ivone Lara ícone da luta da humanização da Saúde mental mas a imagem que aparece é da médica branca.

Não é simplesmente sobre matemática, mas sobre racismo, branquitude e segregação.

Temos que conhecer a nossa história.

05 novembro 2018

Cachorro Velho

Cachorro Velho foi a primeira obra da autora que li. Em 2005 o livro recebeu o prêmio Casa de las Américas umas das maiores honrarias em premiação literária Cubana. 
A história é fictícia porém realista conta a trajetória de um escravizado Cubano passando da infância até a vida adulta. 
O personagem recebeu esse apelido de seus “proprietários” que achavam peculiar a forma como ele ainda um bebê identificava as pessoas pelo cheiro em busca do cheiro da mãe, já idoso não se recorda do próprio nome. 
Nos dias de hoje nós negros ainda convivemos com a negação de nossa identidade, qualquer bebê negro já é chamado de “bom bom”, “pretinho” ao crescer passam para “negão” “nega”... somos generalizados, somos coisificados, reduzidos a uma banalização, quem se importa em nos olhar nos olhos e nos chamar pelo nome? Quem se importa nos dar essa dignidade?
Cachorro velho desejou a morte, não tinha esperanças e nem alegrias. Perdeu tudo que tinha, a mãe, amigos, a saúde. Sofreu covardemente violência física e psicológica que eram a base de escravidão negra. Relatou a dor das mães negras vendo seus filhos sendo vendidos. Fala da maldade da branquitude, eles são os causadores de tanta dor e sofrimento. A velhice não é respeitada e quando resistimos a dor e ao tempo nos matam, a branquitude considera uma afronta a nossa sobrevivência. 
As fugas, os Quilombos, o sincretismo religioso, as griot, até mesmo os suicídio compuseram parte de nossa resistência. 
Uma leitura forte e dolorosa mas totalmente necessário, temos que conhecer os caminhos dos nossos ancestrais para traçar os novos que vamos deixar.
Roseane Correa