1. 3. 4. 5. 10. 14. 19. 24. 29. 30. 31.

26 dezembro 2020

Memórias da Plantação - Episódios de racismo cotidiano

             







            Para a mulher negra, a escrita é um ato de transformação. Segundo Grada, é onde ela não é a Outra e sim ela mesma. Se negar a ser objeto e se protagonizar enquanto sujeito. É um ato político! É oportunidade de se opor ao colonialismo e dizer não ao lugar do Outro.

O livro descreve o racismo atemporal, cotidiano, naturalizado, romantizado, entranhado nas nossas relações sociais. As plantações, que no caso do Brasil podemos exemplificar pelos canaviais, as explorações de minérios, são locais sistematizados para a exploração colonial.

Para falar sobre a máscara de flandres foi usado o famoso retrato de Anastácia. Há que diga que a função da máscara seria para impedir a alimentação. Mas Grada traz a tona a reflexão de que era pra evitar que a mulher negra falasse. 

Foto da Internet

       

            Para o colonizador tudo lhe pertence incluindo o alimento e a palavra. 

A fala da mulher negra desconcerta a estrutura social. Segundo os relatórios MEPCT/RJ (Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura), os agentes do Estado relatam a insatisfação em trabalhar em unidades de privação de liberdade destinado a mulheres. Local com 68% de mulheres negras os agentes prisionais as classificam como as que “falam demais” ou “reclamam demais”. As feministas hegemônicas nos acusam de não integrar a pauta maior que é a luta de classe e atestam que “falamos demais” sobre racismo. Nossos pares nos abandonam quando conseguem uma mobilidade social pois somos mulheres que “reclamam demais”. O estereótipo da mulher negra barraqueira é um dos mais difundido, ora o que seria o barraco se não uma denúncia? Não querem nos ouvir falar sobre colonialismo, do sexismo, do racismo, da violência... 


            Para o colonizador tudo lhe pertence incluindo o alimento e a palavra.

No processo de criação do Outro o branco projetou no corpo não branco tudo o que considera ruim e projetou em si próprio toda a positividade. Não se trata de um distúrbio moral ou psicológico, é tudo calculado, intencionado, decidido e projetado e com propósitos econômicos e sádicos. A construção do negro é fruto do imaginário do branco. Segundo a autora a alienação construída pelo banco faz com que nos identifiquemos com o herói branco e que rejeitemos os nossos iguais construídos como inimigo negro. Ao sujeito negro lhe é negado a viver/ser o Eu, e ele acaba vivendo como o Outro, definido pela supremacia branca. 

Negros são odiados enquanto raça e os detalhes da escravização, do colonialismo do racismo são as verdades que a máscara de flandres tenta ocultar. A imposição do silêncio é para que o branco não seja questionado sobre as suas criações/ações racistas. Reprimir a fala do negro é a forma do branco se proteger. Se falamos, a nossa versão a nossa realidade é colocada em dúvida. 

No livro é detalhado os 5 mecanismos de defesa do ego brancos: negação, culpa, vergonha, reconhecimento e reparação.

Para contextualizar a autora traz a teórica Gayatri C. Spivak que escreveu o tão famoso ensaio: Pode a subalterna falar? E Grada responde um sonoro NÃO!

O sujeito negro é descrito como incapaz de questionar os discursos coloniais. Patrícia Hill Collins, também citada no livro, fala dos argumentos da ideologia colonial de que grupos subordinados, os menos humanos, se identificam incondicionalmente com os grupos poderosos e não tem assim condições de uma interpretação válida pela opressão sofrida. Mas na verdade os grupos subalternizados, colonizados não são vítimas passivas e nem cúmplices dessa dominação. O livro rompe com a romantização do oprimido.

Na construção racista, os negros são descritos/classificados como desumanos, primitivos, brutos. A sua fala desqualificada, invalidada ou representada pelos brancos “negrólogos” que se intitulam especialistas em nós. 

O momento acadêmico vivido pela autora foi com violência racial. Várias foram as tentativas de fazer com que ela não produzisse conhecimento. A academia é colocada como guardiã de interesses políticos dos brancos e a interpretação dos negros feita a luz de outras perspectivas, que não a branca, é invalidada. A saga desde a inscrição até a conclusão do seu doutorado foi racialmente marcada. Regras modificadas para impedir a progressão para a etapa seguinte, sugestão para que ela escrevesse de casa e não usasse o espaço físico da universidade,   sem o crachá e enquanto mulher negra era a única em que a equipe de segurança a parava para se certificar se ela era realmente aluna.

Na dinâmica de hierarquia onde negritude significa “inferioridade” e estar “fora do Lugar” e a branquitude “superioridade” e “estar no lugar”, faz com que o corpo branco pode estar em todos os lugares e o corpo negro tem seus lugares específicos. 

O racismo é uma realidade violenta que está dentro das relações sociais. O negro vítima de racismo é desprovido de importância política e em caso de um ataque racista, há uma mobilização para compreender o agressor e uma omissão e desrespeito em relação a vítima. O branco se sente desconfortável com a visibilidade do racismo.


Tereza de Benguela 

A autora descreve três características do racismo: a construção da “diferença” tendo o branco como norma, as diferenças construídas são hierarquizadas e com isso naturalizada e por fim as obstruções descritas são acompanhadas por poder histórico, político, social e econômico então, grupos racializados não podem ser racistas nem performar o racismo pois o mesmo não detém poder. Esses grupos podem ser preconceituosos, mas racista não. 

Na Alemanha a autora fala da tentativa de evitar usar o termo racismo, sao eles a  preferência para o uso de termos como xenofobia. No Brasil a todo momento tentam classificar o racimo como bulling.

O branco tenta naturalizar o seu racismo omitindo a historicidade da opressão. Lê a si próprio como “civilizado” e “decente” e o sujeito negro como: Infantil, primitivo, incivilizado, animalizado e erótico. 

Para a construção da tese de doutorado, Grada entrevista algumas mulheres de descendência africana e transcreve na pesquisa a experiência de três delas e suas próprias experiências com o racismo. 

Quando com 12 ou 13 anos foi a um médico, no término da consulta esse homem banco a “convidou” para ser empregada de sua família durante as férias. Por ele ser branco e ela uma criança negra a relação de médico paciente transformou-se em senhor e sua escrava devido  cor da pele. Uma menina branca em uma consulta médica dificilmente seria convidada para ser empregada de uma família de 4 pessoas durante suas férias escolares. Essa experiência no Brasil é naturalizada, uma criança, uma menina preta a partir dos seus 5 anos de idade já é lida como uma possível trabalhadora doméstica. O racismo também é genderizado. 

Segundo Mirza, mulheres negras ocupam o terceiro espaço, uma espécie de vácuo as margens da raça e do gênero. A experiência com o racismo é única pois para a mulher negra o racismo não se descola do sexismo. Existe uma falsa sororidade por parte das feministas ocidentais quando elas tentam colocar no mesmo grupo a si própria que enquanto brancas são herdeiras de privilégios do escravismo e colonialismo e mulheres negras herdaram dor e expropriação da própria humanidade. Homens negros não gozam de todos os privilégios do patriarcado.

A forma como a mulher negra experimenta o mundo é racializada. As pessoas se sentem autorizadas por exemplo a tocar em seus cabelos, sem constrangimento perguntam como mulheres negras higienizam o cabelo, estar com o cabelo crespo é considerado um ato de rebeldia pois o cabelo crespo foi usado para justificar a subordinação dos sujeitos negros, é usado como marca de servidão e colocado como símbolo de primitividade, desordem, inferioridade e não civilização, associam o cheiro da mulher negra a animal como macaco.

O relacionamento interracial não é símbolo de segurança. O sadismo racial é mais forte e em tons de “brincadeira” a relação de hierarquia racial se mantém. Piada racista são expressões do racismo que necessitam do consentimento e cumplicidade do riso. 

O racismo constrói a mulheridade negra como doméstica assexual obediente e a prostituta primitiva sexualizada. Lélia Gonzales em seus escritos fala das categorias mulata, mucama e mãe preta para denunciar como a mulher negra é representada no Brasil. 

Uma das entrevistadas fala de como ela era transformada em “sem cor” pelas pessoas brancas. Amigos diziam que na achavam que ela era negra. Era a tradução de um comportamento fóbico e uma negação do próprio racismo. Ao colocar a entrevistada como “sem cor”, invalida-se automaticamente toda violência racista que ela poderia relatar.

A palavra N não é neutra, trata-se de um conceito colonial inventado que significa primitividade, animalidade, ignorância, preguiça, sujeira, caos etc e esta ligado a uma experiência coletiva de opressão racial, brutalidade e dor.

O racismo leva ao suicídio. Mulheres negras experimentam níveis de solidão que vão muito além da rejeição da possibilidade de um relacionamento romântico pautado na responsabilidade afetiva. O vazio causado pelo isolamento e não pertencimento a nenhum espaço é adoecedor. Para o colonizador o suicídio é algo inadmissível é a decisão do sujeito negro do que fazer com a própria vida, é um ato subversivo dentro da dinâmica racial. A comunidade escravizada era punida caso cometesse suicídio, o branco não queria perder “mercadoria” e não queria que negros se tornassem sujeitos.

O trauma colonial é alimentado pelo racismo cotidiano. A todo tempo somos remetidos de volta ao sistema de opressão racial. A academia não estuda as consequências psicológicas sofridas pelo trauma racial. Os Africanos que ficaram em África e os que foram arrancados de seu continente para a diáspora tem um trauma histórico e coletivo, fruto da escravização e do colonialismo.

O livro fala da experiência do racismo na diáspora, das construções sociais produzidas e do quanto as vítimas do racismo são silenciadas no seu cotidiano. 

A autora Portuguesa estudando na Alemanha fala de experiências que são comuns na diáspora como no Brasil e Estados Unidos. Não falar sobre racismo que vivemos, é deixar uma ferida aberta sem a oportunidade de cicatrizar. 

Nunca fomos e nunca seremos passivos e coniventes com as opressões coloniais e vamos continuar falando. 


Grada Kilomba

25 novembro 2020

Racismo na Droga Raia- Tijuca


             Era pra ser um dia normal, mas eu sou negra!

O autor Ta-Nehisi Coates no seu livro Entre o mundo e Eu. Escreve para seu filho de 15 anos explicando que por ele ser negro as suas experiências de vida seriam completamente diferentes para as pessoas de grupos raciais diferentes.

Ahhh Roseane, mas raça nem existe. Melhor! Só tem uma, a raça humana.

A raça não é uma condição biológica, mas uma condição social, psicossocial e cultural que foi criada, reiterada e desenvolvida na trama das relações sociais, já nos dizia Octavio Ianni.

Os meus traços fenótipos, os meus traços raciais como meus lábios grossos, minha bunda grande, meu cabelo crespo, e a cor retinta da minha pele fala de mim sem que seja necessário que eu abra a boca. O meu corpo é um discurso. Para a supremacia branca (dos supostamente brancos do Brasil) o meu corpo é uma ameaça. Não é preciso absolutamente nada. bell hooks nos chama para refletir, a construção racial que fizeram do nosso corpo foi para que o mundo abertamente sentisse ódio e medo de mim. 

Eu estava tendo um dia de rotina, acordo às 5 horas da manhã com os primeiros raios de sol e os cantos dos passarinhos, molho as plantas e faço um chá pra iniciar minha rotina de estudos e escrita. Mas ontem tive que sair de casa, consulta com oftalmologista e uns assuntos pessoais pra resolver. Como estou em processo de construção de uma rotina de auto cuidado, eu conto com o apoio das amigas pretas. Uma das minhas maravilhosas me indicou um protetor solar com o valor de 17,49.

Como iria no médico praça Saens Pena, passei na Drogaria Raia que fica na rua General Roca, 661-C, Tijuca. 

E então sou arremessada para o mundo onde a supremacia branca determina que seja o meu. Ao colocar o primeiro pé na loja o segurança, um jovem branco aumenta a voz e dispara uma “boa tarde”. Para quem não sabe, essa é uma estratégia de treinamento de muitas lojas. Pessoas “racialmente perigosas” tem que saber que foram notadas, que a sua presença no espaço físico da loja está em observação, isso inclui os boa tarde de segurança, as jovens que oferecem cartão de crédito, as funcionárias que vem oferecer ajuda em loja de auto atendimento. São determinações da loja, alertar ao “suposto meliante” que ele foi visto.

Respiro e sigo atrás do eu produto e o encontro. Entro em uma fila e vejo uma prateleira de promoção de esmaltes. Eu amo pintar unhas e vi um esmalte verde. Na hora me veio memória afetiva boa, poxa eu nunca havia pintado as unhas de verde, poderia ser engraçado então por 7 reais topei ter a experiência e peguei esse produto também. Ao chegar na minha vez de pagar, a atendente do balcão que estava atrás do seu computador me informa que eu estou na fila errada, que aquela fila era para as pessoas que vão solicitar medicamentos e que o caixa fica do outro lado loja. Quando vou pegar meus produtos a atendente recolhe o protetor e o esmalte e coloca na bolsa de proteção da loja que tem um lacre que só o caixa pode abrir. 

Imediatamente eu perguntei a funcionaria o motivo do procedimento, a mesma desdenhou da minha pergunta e disse que não era nada demais, que era para me “ajudar” na hora de ir ao caixa para eu não ficar com as coisas nas mãos. Eu insisto e aponto para um cestinha de plástico que é oferecida aos clientes em compra na perfumaria perguntei por que pra mim tem que ser lacre e para aquela senhora é um cestinha? 

A atendente me olha com uma cara de absurdo e vai ao caixa retirar o lacre e me devolve os produtos fora de um cestinha, e com muita raiva. Solicito conversar com a gerente. A gerente teve uma ação pior do que a da vendedora, disse que o procedimento é padrão e que eu estava colocando palavras em sua boca, que a atendente não havia cometido racismo, que ela mesma não era racista. 

Perguntei a função do lacre e ela me disse que seria uma proteção adicional para prevenção de furtos já que a loja já conta com segurança, câmeras, os atendentes. Esse era um procedimento para produtos especiais. Aí eu perguntei quais produtos estão no protocolo para serem lacrados, ai ela disse que todos os medicamentos do balcão.

Nesse momento eu perguntei novamente: se eu não comprei remédio, se eu não pedi informação de remédio, se eu não falei em nenhum tipo de produto desse balcão, se na loja há cestinhas para compras na perfumaria, se eu errei a fila e perguntei onde era a fila correta. Qual foi o critério que ela usou para recolher da minha mão e lacrar um esmalte e um protetor solar? 

Por fim uma advogada que assistiu toda a cena me deu o contato dela caso eu precise de testemunha. A vendedora com a gerente na sua empáfia e um olhar de autoridade determinou ali que EU era a pessoa errada e que NÃO houve uma situação de racismo. 

Os RACISTAS são assim, eles tentam transferir a culpa para as vítimas.

Nisso, eu fiquei muito chateada, não consegui me alimentar direito, a dor física veio em forma de dor de cabeça, minha concentração foi embora e não pude continuar meus estudos nesse dia, não tive alegria para ver um filme, não consegui se quer ouvir uma música, perdi uma reunião. Fiquei sozinha no meu luto porque a vida de mulher negra retinta é assim. 

E eu só queria um protetor solar, eu só queria cuidar de mim...

 

21 novembro 2020

Carta a Zumbi de Palmares.



Oi Zumbi, como vai essa força? Eu queria lhe render homenagens ontem, mas não consegui! Até que tentei, fui até o seu monumento na avenida Presidente Vargas e o nosso povo estava lá, mas meu coração não estava. 

Sou grata Zumbi, a tudo que você representa, por favor não me entenda mal.

Eu vou te contar algumas coisas bem pessoais tá, coisas que me alegram muito. Sabe o 20 de novembro? Pra mim já era dia de festa bem antes de eu saber sobre você. No Brasil é assim né, eles escondem o jogo pois informação é poder.

Eu já cheguei a pensar que 13 de maio me representava, mas era tudo mentira. Mas deixa eu te contar os meus babados, tenho certeza de que você vai gostar. 

O dia 20 de novembro na minha família é a abertura de uma tríade de aniversários: 20 é o dia da minha prima/irmã, 21 da matriarca que hoje celebra do Orum e dia 22 do meu primo/irmão. Nas minhas memorias afetivas, lembro dessa semana com muita alegria. Família reunida, comida boa, um bom samba e cerveja gelada. Até que um dia me falaram de você. Eu quero era órfã de herói, me senti acolhida. Sabe quem me contou? Foi o bonde do Frei David, lá no final da década de 80.  Eu ia pra São Joao de Meriti e fazia coreografias Afro nas missas do Frei. As roupas de tecidos africano, modelos originais, quem me emprestava era a saudosa tia Cacilda, uma Yalorixá com o coração do tamanho do mundo, uma mulher firme, grande conselheira que adorava me enfeirar com as roupas “da macumba” pra eu ir dançar na missa. Eram turbantes coloridos e batas africanas que me emponderavam enquanto mulher negra. Lembranças boas.

Mas nos doas de hoje temos de tudo, incluindo a tolice de alegar que você é de esquerda. Pessoas desonestas sabe. É só pesquisar direitinho que da pra descobrir que o movimento dos negros no Brasil em pró de sua liberdade, começou desde a chegada do primeiro grupo que foi sequestrado em África. Na verdade, nem precisaram colocar os pés aqui, na travessia do atlântico eles já estavam criavam os seus atos de resistência. E agora estão divulgando que nessa época havia divisão política no Brasil de direita e esquerda.

Eu nem sei se rio ou se choro porque a esquerda nem liga pra gente. Nos chamam de indentitários, nos acusam de diluir a luta de massa que pra eles é a luta de classe. Racismo pra esquerda é algo secundário. 

Mas vamos voltar a falar de coisa boa. Sabe outras memórias que tenho do seu dia? Os blocos Afro Dudu Odara e Orumnilá. Novembro, a concha acústica da UERJ transbordava em tambores. E era assim seu dia, sua semana o seu mês. Recheado de festa e de alegria. 

Mas esse ano eu fui interrompida. 

Na véspera do seu dia, ao invés de eu lembrar das tias cortando legumes e carnes para fazer o almoço do dia seguinte, ao invés de lembrar do meu pai e tios juntando cascos de cerveja nos engradados para providenciar a compra da bebida, fui interrompida por uma terrível notícia.  João Alberto Silveira Freitas de 40 anos, foi espancado até a morte na frente de sua esposa, lá na cidade de Porto Alegre. 

Eu fui burra e cometi um erro, assisti ao vídeo do assassinato. Eu sei que não tenho peito pra isso, mas me atrevi. Os gritos ainda estão assombrando a minha mente, as imagens dos socos na cabeça ficam flutuando como se fosse um filme. 

Não estavam matando Joao, estavam matando a nós negros. 

O corpo negro é tolhido de qualquer tipo de subjetividade e João ousou agir de forma não autorizada pela supremacia dos supostamente brancos do Brasil. O corpo negro não pode olhar nos olhos porque é afronta, o corpo negro não pode gargalhar porque é irresponsável, o corpo negro não pode dançar que está pedindo sexo, e o corpo negro não pode ficar descontente e afrontar, não, isso não, isso nunca! Quem tenta questionar, criticar, impor a voz para pedir uma solução para algo, tem a morte como resposta. Que ousadia é essa? Como assim corpo negro quer tirar a simbólica máscara de flandres para falar? Não! Esse é o limite dos limites.

A imagem da mulher branca de pé, filmando e gozando do momento de dor e morte do corpo de um homem negro é a perpetuação do nosso sofrimento em diáspora. Ela percebeu que estava sendo filmada e foi ameaçar a pessoa que teve estômago e coragem de registrar. “Não faz isso que eu vou te queimar na loja, disse a branca para o suposto funcionário registrava as imagens.  

Lá nos Estados Unidos em 1955, aos 14 anos Emmet Luis Till foi assassinado por homens brancos após ser acusado de assoviar para uma mulher branca. Sabe a branca? O nome dela é Carolyn Bryant e ela admitiu 60 anos depois que havia mentido. Mas assassinos já haviam sido absolvidos muitos anos antes.  O segurança que matou o jovem no supermercado extra em 2019 teve uma fiança de 10 mil reais paga em menos de 24 horas estava em liberdade. Quem pagou?  Thomas Lane, um dos quatro agentes envolvidos na morte de George Floyd durante abordagem policial em Minneapolis, foi solto após fiança de US$ 750 mil dólares e deixou a prisão. Quem pagou? 

Enfim, assassinos de corpos negros têm poderes invioláveis. 

            Bom Zumbi eu só vim me explicar, não esqueci de você não, queria postar uma foto bem linda, de turbante, punhos cerrados, com o sorriso por debaixo da máscara. Mas vai ficar pra próxima. 

Está doendo muito ainda. Mas eu vou me levantar. 

Até lá

 

Roseane

31 julho 2020

Racismo e fascismo & O corpo escravizado e o corpo negro

Racismo e fascismo & O corpo escravizado e o corpo negro

                Foram disponibilizado gratuitamente dois ensaios da Toni Morrison chamados Racismo e fascismo e o outro O corpo escravizado e o corpo negro. Os textos foram escritos em 1995 e 2000 respectivamente.  Ao ler tive a sensação de que eram datados a bem pouco tempo pois trata de realidades orgânicas e vivenciadas por nós brasileiros nesse tenebroso momento político.


            Toni elencou 10 passos essenciais que alicerçam da dupla inseparável: racismo e fascismo que tem a fabricação do inimigo como principal estratégia.


Na diáspora a cor da pele é quem determina quem vai morrer ou viver, de que forma e quando, como bem disse o filósofo camaronês Achille Mbembe. 

Achille Mbembe

Demonizar, mentir, criminalizar, patologizar são mais alguns itens da lista. Inviabilizar a ciência, desqualificar e destruir tudo que possa mostrar a verdade. Tudo é feito com o apoio da grande mídia que divulgando massivamente os ideais racista e fascista.  


Em minhas reflexões incluiria na lista a religião. Religiões tem servido como amuleto para justificar a maldade intrínseca do ser humano e suas ações arbitrarias. Possibilita se eximirem de culpa pois tudo é feito em nome da fé. O poder, me atrevo mais uma vez e cito o capital, é a espinha dorsal dessas ideologias. 


            E a história do povo preto? Devemos esquecer e seguir adiante ou devemos rememorar. Não pesquisar e debater sobre o que nossos ancestrais foram submetidos é o ideal?

Foto da Internet

Não para James Camaron que em 1988 inaugurou o Museu Americano do Holocausto Negro e não para Toni que foi indagada em uma entrevista se realmente é necessário que ela detalhasse em seus escritos os horrores e as barbaridades que o branco submeteu a população negra em África e na diáspora. Apagar da memória 3 séculos de horror racial e as estratégias de resistência dos nossos ancestrais em nome da paz na consciência de quem os causou é uma agressão renovada é nos mandar engolir o choro.


Toni, exausta, desabafa. Para a nossa dor não existe um lugar para que possamos chorar, deixar fluir o banzo. Não há memoriais gigantes que nos façam lembrar dos nossos e de nossa resistência. Não há lugar especifico para esse tipo de acolhimento e para prestarmos homenagens.

Museus são formas poderosas de eternizar a memória. 

James Camaron

       Abdias do Nascimento beijou o chão da serra da barriga, terra de zumbi dos palmares em 20 de novembro de 1988. O gesto foi diante de Lélia, Jose Miguel, Jesus, Abgail, Mãe Hilda, Aguinelo da Casa Branca, Edialeda e outros. E foi para lá que foram as suas cinzas. É disso que Toni está falando.

Foto da Internet

Escravidão e racismo são fenômenos diferentes. A escravidão existiu na história das civilizações em diversos povos e não era necessariamente racista. Comprar e vender pessoas era uma prática antiga. A racializaçao para a conquista do Novo mundo que transformou a história da humanidade. A demonização de traços raciais nitidamente identificáveis marcava a divisão entre escravizados. O corpo negro foi transformado em um fardo político no mundo.

Foto da Internet

Hoje a principal tecnologia do controle dos corpos negros é o encarceramento em massa. Esse método serve também para o enriquecimento do grupo dominante. Como bem disse o professor André Nicolitt, no Brasil a mesma justiça que para um crime de racismo não chega aos fins de condenação, uma acusação de crime ao patrimônio como roubo, leva ao encarceramento imediato que se mantem durante o tempo dos tramites na justiça e chega na maioria das vezes a condenação. São verdadeiras arapucas jurídicas que domina vidas e tem poder de controle social que tem foco no corpo negro.

Toni Morrison





25 julho 2020

Nada digo de ti, que em ti não veja.

Adicionar legenda

                    Eliana Alves Cruz é uma das mais importantes romancistas dos últimos tempos. Com seus escritos, ela tem o poder de nos transportar para outras épocas e contar histórias através de narradores que são estruturalmente ocultados da literatura brasileira. Ela cria em nós uma aliança e pertencimento com nossos ancestrais e fala das suas possibilidades de vida além dor do sistema escravocrata.

 

            Romance é um estilo literário que com sua narrativa nos conta uma história que nos remete ou transita por um tempo/época que são bem marcado. Nos situamos temporalmente por datas que podem ser mencionadas, mas pela ambientação, comportamento social, cultura e costumes bem definidos para a época explorada. Este livro é um romance histórico recheado de suspense.

 

            A autora explora os mistérios da vida e do amor. O narrador (a) secreto (a) é o que tudo sabe, mas está tudo em ti. 


            você, tem algo a esconder? Para quem é curiosa como eu, se seduz por esse linguarudo (a).

Foto da internet

 

O período colonial como sabemos, foi uma época de muitas tramoias. O colonizador para chegar nas américas e roubar as terras dos povos originários teve que contar muitas mentiras e manter muitos segredos. Esse mesmo grupo foi para África e sequestrou, transportou além-atlântico e explorou corpos/mentes negras. As vítimas eram infantis, jovens, femininas... Para que toda essa estrutura de dominação se mantivesse, além da brutalidade física, poder bélico, genocídio e benção cristã, mistérios e intrigas dentre o próprio grupo dominante era necessário. 

Foto da Internet

 

E aí? Confiar em quem? Estamos a salvo com nossos segredos?

 

            Duas famílias com grande poder econômico têm seus conflitos expostos. O privilégio branco e a tentativa de manter superioridade é baseada por motivos que vivenciamos até os dias de hoje que se da através da exploração e apropriação de saberes e corpos alheios.


             Genialidades são submetidas a um sistema de opressão, mas no livro a resistência não é ocultada, muito pelo contrário, as estratégias hiper criativas são surpreendentes. O grupo da resistência tem seus segredos, seus mistérios e olhos são vendados por garantia.

 

Saberes mágicos, potência estratégica, perspicácia, poder de negociação, conexão com a ancestralidade, identidade étnica, persuasão, memória de elefante, o pensar na comunidade, na partilha são algumas das molas propulsoras do grupo de escravizados narrados. O âmago para resistência é o amor. 

Foto da Internet

 

O amor é quem manda em tudo. Pela fé, pela família, pela terra mãe, pela comunidade, pelos ancestrais, pela identificação de si própria nesse mundo, pelo prazer erótico e as delícias do corpo e da carne... é assim que eles sobrevivem ao banzo. 

 

Experiências afetivas fortes e proibidas são prato cheio para o nosso fofoqueiro (a), ops, narrador (a). O medo de perder dinheiro e a moral perante a sociedade bota tudo de pernas para o ar.

Foto da Internet

 

            Ambientado no Rio Antigo e com os numerosos Africanos e afro descendentes, a cidade preta surpreende o líder religioso cristão que aporta para mais uma missão corriqueira da época, bem no estilo “ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão”. Esse que deveria ser o exemplo de integridade, esta mais para o “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”.

Foto da Internet

 

            A família privilegiada tem uma vida confortável através usurpação que lhes é peculiar, mas tudo é abalado quando sofrem ameaças de terem seus segredos revelados. 

 

            Vitória é a personificação do poder da mulher negra. É ela que com sua magia, impulsionada pelo amor que ela sente por outro, que sente por ela e que ela compartilha com seus iguais, que as histórias levam várias revira voltas. 

Foto da Internet

Zé Salavú e Quitéria são escravizados desde a infância e atam um romance quando chegam a idade da juventude e dai eles procuram meios de ficarem juntos e a liberdade da família e dos amigos é a opção principal, porém é preciso muito dinheiro pra isso.  Mergulhamos então nos bastidores da exploração econômica dos corpos negros. O sentimento de posse de seus escravizadores e a inveja também são obstáculos. Pelo meio do caminho a amizade e sororidade se tornam arma e escudo.

Foto da Internet

 

O livro é do estilo que nos consome. Ficamos curiosos a cada capítulo. É uma forma diferente e divertida onde a ficção faz contato com a história real. Relações sócias/ raciais  cheio de fofoca porque é disso que a gente gosta.

Leiam o livro!

Eliana Alves Cruz








16 julho 2020

O Tradição dos Orixás - Valores Civilizatórios Afrocentrados

Jayro Pereira

Esse livro conta a história do projeto Tradição dos Orixás, uma iniciativa coletiva lançada no final da década de 80. Descreve a trajetória do principal articulador o Professor Jayro Pereira que junto a professora Gésia de Oliveira levaram a diante o debate. Além dos relatos há um acervo de fotos, anúncios e reportagens da época e do reencontro do grupo em 2016.

 

Jayro é baiano, tinha familiares evangélicos e candomblecistas. Na infância se encantou com a organização ritual da igreja católica. Foi seminarista e no mosteiro teve a sua primeira reflexão sobre o racismo ao ler um artigo que falava do racismo na igreja. Posteriormente um outro episódio o marcou, dentre quinze seminaristas somete ele e outro jovem negro não foram escolhidos para ser enviado a Europa para fazer mestrado e doutorado. Abandonou o seminário, mas não rompeu relações com a igreja católica. 

 

A maior motivação para a formação desse coletivo foram os ataques violentos dos setores evangélicos que lançaram uma “guerra santa” onde o inimigo a ser destruído eram os adeptos da religião de matriz africana. O debate não poderia mais ficar apenas no campo religioso, precisava de um alcance político. Mãe Palmira Navarro líder do Ilé Omo Oya Leji protagonizou um episódio marcante quando processou a igreja Universal do Reino de Deus que distribuía periódicos com calunias e difamação e com o uso de imagens de crianças do candomblé intituladas “Filhos do demônio”. A grande mídia só documentava por uma disputa de audiência e não pela causa, era Rede Globo versus Record. Jornalistas como Carlos Nobre, Tim Lopes, Chico Alves e outros, esses sim faziam um trabalho jornalístico informativo.

 


Os terreiros eram alvos de depredação e invasão. Quem usasse adereços significantes aos seus orixás, vodus e inquices como turbante, fio de contas e roupa branca eram apedrejados, espancados e surrados com a bíblia para “expulsar demônio. A igreja Universal lançava livros ensinando como vencer o “maligno” que era a religião de matriz africana. A igreja católica até teve um posicionamento, fez um manual para ser distribuído pelo departamento de Ecumenismo, mas ficou em alerta após o episódio conhecido como “o chute da santa”.


Foto da Internet 

 

Abdias do Nascimento já publicava sobre o assunto, enquanto deputado federal todas as sessões do congresso eram abertas com a frase “Sob a proteção de Deus” e Abdias iniciava seus pronunciamentos com “Sob a proteção de Olorum” e sempre que podia incluía referências as divindades africanas. Os negros foram os que mais sofreram na ditadura militar, foram vítimas de arbitrariedades e desgraça econômica. Na campanha pelas “Diretas Já” o amarelo foi a cor escolhida pelo movimento pluripartidário e Abdias para realçar o protagonismo da comunidade negra e da matriz africana invocava que vestissem o amarelo de Oxum.

 

Abdias do Nascimento - Foto da Internet


São relatados vários projetos e luta pela valorização o negro, pela sua existência e humanidade como por exemplo a Eco-Afro Rio 92 que demonstrava a visão ecológica da cultura Negra para a sociedade ignorante e preconceituosa que tentava impedir oferendas em áreas ambientais.

 

Pelo livro me sinto a vontade de dizer que professor Jayro é um homem destemido.  Na cara dura foi ao Jornal O Dia para falar do projeto Tradição dos Orixás e o jornalista  que acompanhou o grupo  extraiu 7 sete pontos de sua vivência: 1) Se defender dos ataques físicos e simbólicos dos evangélicos 2)Emponderar os participantes e mostrar o valor civilizatório da religião 3)Valorizar o papel dos sacerdotes enquanto construtores de conhecimento 4) Se proteger das “gangs pentecostais” que agiam coordenados  e armados,  invadiam, intimidavam e quebravam objetos ritualísticos do terreiro 5) A figura do professor Jayro como provocador do movimento negro  que muitas vezes incorporavam o pensamento do colonizador 6) Debater sobre os religiosos que eram também responsáveis pelo preconceito dirigido a sua religião. 7) A tradição africana é uma luta antirracista.

 

Professor Jairo Pereira


A resistência aos ataques até então não era uma pauta com visibilidade dentro do movimento negro, não se debatia que a intolerância religiosa é racismo religioso. Há um depoimento de um integrante do grupo Tradição onde ele analisa a Marcha contra a intolerância religiosa e relata que mesmo com várias religiões na marcha, o Candomblé é que toma pedrada na cabeça, tem seus espaços sagrados invadidos.


  Nas suas articulações frequentou o IPCN (Instituto de Pesquisa das Culturas Negras) na tentativa de chamar a atenção para incorporar esses conflitos nas manifestações do centenário da Abolição. Não ficou satisfeito com o retorno, fundou o IPELCY (Instituto de Pesquisas e Estudos sobre Língua e Cultura Yorùbá) e com a chancela de Instituto, passara a dialogar com o movimento negro e outros grupos institucionalizados.

 

O protagonismo era concedido aos líderes religiosos como Íyá Beata de Yemonjá, Íyá Meninazinha de Oxum Íyá Palmira Navarro e Íyá Wanda de Omolu. As reuniões ocorriam nas casas de terreiro que eram verdadeiros pedaços da África na baixada fluminense. O projeto foi considerado um grande ebó que permitia um olhar decolonial pra a situação vivida pela comunidade negra. Os terreiros eram escola de formação para enfrentar a “guerra santa” inventada pelos evangélicos. Muitos militantes se descobriram enquanto negro, se aproximaram da comunidade negra, fizeram uma revisão das próprias vidas e se iniciaram no candomblé.

 

Foto da Internet


Fazer a esquerda debater questões da religião de matriz africana foi um desafio que fez o professor colecionar tensões principalmente com a ala cristã. A exemplo disso temos a então Vereadora Benedita da Silva que era liderança da Associação de Favela do Rio e que rompeu a articulação com a temática. O grupo recebeu apoio de diretórios universitários e tiveram a presença de Chico Mendes no I Encontro do Tradição dos Orixás.


Foto da Internet 

 

Frei David que é um dos mais importantes debatedores na causa racial dentro da igreja católica foi muito criticado e visto com muita desconfiança. Havia o receio de uma inculturação, um novo colonialismo da igreja católica que estava usando elementos da cultura afro-brasileiras em cerimonias religiosas. Poderia ser, mas uma tentativa de descaracterizar a cultura afro trazida pelos escravizados.

 

O professor não poupava críticas aos adeptos da religião de matriz africana e chamava para reflexão os que tinham comportamento ocidentalizado com uma dominação colonial. Debatia sobre visão a dualista de existência como a arena do bem e do mal. Criticava práticas “inventivas” de lideranças que individualizam e centralizam tudo na própria pessoa e não enquanto patrimônio civilizatório e quando ocorre morte do líder o terreiro acaba. Uma outra critica é a do “monopólio de conhecimento religioso” e citou o exemplo o ritual fúnebre do Axexê que se encontrava centralizado nas mãos de poucos sacerdotes.  Parecia ser uma reserva de mercado já que esses serviços litúrgicos se tornaram lucrativos. O que o professor pondera  que tal pratica vai contra a todo o processo civilizatório africano que é a de transmissão de conhecimento.

 

Se tratando de literatura o que tinha disponível na época eram escritos de pessoas brancas e até mesmo euporéias como Pierre Verger, hoje temos uma gama de escritores negros falando sobre a civilização negra. Um livro indicado para a compreensão do afrocentrismo diaspórico é o livro de contos da Mãe Beata de Yemonjá chamado Caroço de Dendê - a sabedoria dos Terreiros.


Mãe Beata de Yemonja


O mais importante era o entendimento da religião de matriz africana e o espaço do terreiro sob o aspecto civilizatório e como espaço antirracista. O oráculo foi usado na função original e os processos desencadeados pelo grupo o seguiam. Quem respondeu foi Sàngó, segundo Mãe Meninazinha seria ele o patrono dessa jornada. A função ontológica do oráculo é organizar, dar direção. Terreio é espaço de visibilidade de visão de mundo Africano, é lugar de pedagogia.

 

Para pensarmos o hoje, devemos nos reportar ao nosso passado. Para Jayro o projeto Tradição dos Orixás é uma experiência viva na qual seus integrantes compartilham memórias, experiências e ideias. 

Foto da Internet

 

O terreiro é o principal lugar de referência de tradição africana, para além da ritualística religiosa. A ancestralidade deve ser reconhecida como caminho de organização de vida e de existência, restituindo assim, o modelo de racionalidade que valoriza o “nós”.

Leiam o livro!






09 julho 2020

O livro da Saúde das Mulheres Negras – Nossos passos vêm de longe

Roseane Corrêa
Estamos no mês de julho, mês das mulheres negras, ler esse livro me fortaleceu, não estou só. Cada texto traz contribuições para repensarmos a saúde das mulheres negras. São elas acadêmicas, líderes religiosas, líderes comunitárias, mães, filhas, moradoras de rua, escritoras, parteiras, um universo amplo de mulheres que tem muito a nos ensinar. 


Os textos são do meado dos anos noventa início do SUS e sem política de cotas o que tornou a leitura mais interessante. Percebe-se que a estrutura racista não é a mesma. O racismo se atualiza conforme o tempo e o contexto social, como por exemplo, não havia política de cotas, hoje ela está em vigor, então para impedir que a população negra usufrua do seu direito a reparação histórica, o racista se tornou o principal fraudador desse direito conquistado.


O texto de Mãe Beata é bem pessoal, fala de si, de como nasceu nas águas e se tornou Beata de Yemonjá. A trajetória de um batismo compulsório até sua iniciação no terreiro de Alaketu, é sobre a família o amor e as dificuldades vividas. Uma das nossas maiores líderes religiosa, pilar em nosso processo civilizatório enquanto comunidade de terreiro. Mulher forte, decidida e muito crítica. Hoje é nossa ancestral, temos a obrigação moral de honra-la e praticar os ensinamentos por ela deixado.

Mae Beata de Yemonjá - Foto da internet

O objeto analisador do livro é a saúde, mas em toda a escrita percebe-se o amor como eixo de ligação. Amor esse, que é estruturalmente negado a mulher negra em quase todos os âmbitos de sua existência, mas que em resistência o (re) construímos ao nosso modo, dentro de nossas possibilidades, com base nossas raízes ancestrais.

A ineficiência do estado e das políticas públicas devido o racismo estrutural coloca as mulheres negras (até hoje) na base da pirâmide social. O termo interseccionalidade não foi usado na época, mas o texto que conta a história de Lélia Gonzales destaca que ela já citava diferentes opressões que podem atravessar a existência da mulher negra, Lélia enfatizava a importância do debater além do racismo o sexismo, machismo e homofobia e pagou um preço caro por isso, muito caro, mas Lélia não se calou.

Lélia Gonzales - Foto da Internet


Para muitas mulheres negras o algoz pode estar em seu ambiente familiar ou nas amizades próximas. Se dedicam integralmente a família e sofrem violência física e psicológica dentro de casa. Aconselhou-se compartilhar a sua dor, denunciar, não é "normal", não "faz parte da vida" ser submetida a violência doméstica.  O mapa de violência da ONU de 2015 apontou um aumento de 54% de homicídios de mulheres negras, no mesmo período, os homicídios de mulheres brancas caíram 9,8%. Se souber de mulheres negras que estão sob violência, denuncia e apoie a vítima.

No terreiro de candomblé e umbanda que muitas renasceram e tantas se fortalecem. Chegamos ao Brasil com a liberdade confinada, maltratadas, acotoveladas nos porões dos navios negreiros, mas as raízes africanas estavam em nossos corpos e não foram removidas, nos multiplicamos, crescemos e demos frutos. O corpo da mulher negra é da transa e do transe.

Alice Walker - Foto da internet 

bell hooks salienta: o amor cura. A autora volta na história pra entender por que muitos apresentam dificuldade de amar e nos lembra que os nossos ancestrais foram tolhidos de toda e qualquer forma de vínculo afetivo a seus iguais, filhos vendidos, amantes, amigos, companheiros apanhando sem razão. Todo um histórico de violência física como punição e correção que acabamos por reproduzir em nossos lares e com nossas crianças. Meninos negros são ensinados a não chorar e a não demostrar sensibilidade. No tempo da escravidão que mostrasse sensibilidade nos momentos de castigo, era torturado ainda mais. Não demostrar emoções tornou-se um hábito de sobrevivência a brutalidade racial. No pós escravidão, a extrema pobreza obrigava a separação familiar e a separação de comunidades. Aqui no Brasil foi (é) muito comum que meninas pequenas serem entregues a outras famílias para ter o que comer, algumas outras autoras que estão do livro relatam que passaram por essa situação. Além do trabalho análogo a escravidão desde a terna infância, a violência sexual a menina negra foi (é) uma das maiores barbáries a infância preta. Por favor entendam a “novinha” não está pronta, é só uma criança.

Vilma Reis - Foto da Internet


O feminismo é um movimento de mulheres muito importante, mas negligência as pautas das mulheres negras. A universalização das mulheres silencia e oprime. Então o feminismo negro e outras coletividades de mulheres negras ganham destaque.

O corpo da mulher negra é território que por muitas vezes é explorado de forma inadequada. A mulher negra gorda está submetida a uma hierarquização entre as mulheres, uma cultura que leva a exclusão social. A esterilização compulsória, química ou cirúrgica, como controle populacional para a mulher negra pobre. Viver com câncer para muitas é sofrer com a falta de empatia do profissional que lhe assiste. O aborto quando feito na clandestinidade leva ao adoecimento, é um problema de saúde publica, o investimento em educação e saúde reprodutiva não chega de forma eficiente nas comunidades mais pobres, e não podemos esquecer a mulher negra tem o direito de decidir. O mioma uterino e a histerectomia total que é mais realizada em mulheres negras, muitas não fizeram o tratamento adequadamente por falta de orientação. O crescente encarceramento feminino leva a outras violências punitivista. A dor do luto tem que ser vivida e não suprimida como muitos esperam, mulher negra não tem que ser a guerreira o tempo todo. Mulheres negras profissionais da área de saúde são vítima constante de ataques racista associado a falta de credibilidade em sua capacidade técnica, uma Enfermeira denuncia que a profissão, majoritariamente negra e feminina, é desvalorizada e discriminada pela maioria dos médicos e sofrem rejeição dos pacientes.

Lucia Xavier - Foto da internet 

As histórias de superação são inspiradoras. Dona Hildézia que foi para o Rio de Janeiro em busca de melhores condições de vida e foi uma das co-autoras do Manual Cidadania Etnia e Raça em 1998, Luiza tem o melhor período de sua vida enquanto funcionária da prefeitura e integrante de um grupo de Mulheres Negras que trabalha na educação em saúde, questões raciais e direitos reprodutivos. Leci Brandrão e sua música revolucionária que a mídia chamava de radical por falar sobre as desigualdade e apontar a situação de mulheres negras como a dona Deolinda, que foi inspiração para uma de suas musicas, líder do Movimento sem Terra que fora algemada e em um camburão encaminhada a uma casa de detenção por lutar por justiça social.

Leci Brandão - Foto da Internet 

Josina da Cunha, uma das organizadoras do grupo CRIOLA, nos anos noventa usou a estética negra como forma de emponderamento, ela foi estudante de letras nos anos 60 na UFRJ, foi uma das poucas professoras negras da rede municipal a falar de questões raciais, mesmo sem apoio da diretoria, questionava os materiais didáticos que não incluíam a historia do povo negro. Nós que hoje temos a lei 10.639 temos muito que agradecer a essas mulheres que vieram antes de nós.

Nossos passos vêm de longe.



Jurema Werneck - Foto da internet