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29 março 2020

Racismo Recreativo

Um inferno chamado: Cunhã, vai buscar minha chinela.

Minha infância foi bem marcada por essa personagem que hoje se quer consigo achar seus nomes nas redes. Cunhã era uma criança preta retinta que fazia parte de um quadro de “humor” do tão consagrado humorista. Um homem branco que fazia Black face e satirizava a religião de matriz africana. Ele tinha a seu lado as filhas de santo, mulheres negras que apareciam limpando, com vassoura na mão. Painho era a performance de um Babalorixá gay, com ávido apetite sexual e que para seu prazer humilhava essa menina preta a Cunhã. A menina preta fazia uma pergunta simples que era respondido com arrogância e hostilidade de painho, quando não acrescido de ameaças de violência física, mas tudo de forma “cômica”. 

O humor televisivo se repetia na vida real, no meu ambiente escolar estão as minhas piores memórias. Dias seguidos a apresentação do programa eram tomados de muita angústia porque eu sabia que chegaria na escola e seria chamada de Cunhã, seria humilhada e ameaçada. Mas tudo de “brincadeira”. Meu comportamento foi se moldando, nem pensar em fazer alguma pergunta a professora. Eu era tomada por ansiedade, insegurança e medo.

 Não me esqueço de uma servente, dona Izaura, uma mulher negra que se compadecia. Ela tinha uma barraca de doce dentro da escola e quando começavam as agressões racistas ela me abraçava e me colocava pro lado de dentro da barraca, nunca trocamos uma palavra sobre o assunto era só um abraço e o asilo e lágrimas contidas. E em casa eu tinha medo de contar aos meus pais, afinal a errada era eu, eu é quem ao sabia “brincar direito”.

O livro Racismo recreativo foi lido com um nó na garganta. Retinta, crespa e gorda. Eu tinha a tríade pra não ter um dia de paz. Mas era tudo “brincadeira” e eu então achava que estava paranoica. 

Obrigada Adilson, não era paranoia. Era racismo.

O racismo tem pluralidade de significados aversivo, simbólico, institucional. Tudo é criteriosamente detalhado no livro.

Além de livros minha outra paixão é o teatro. A mais de uma década eu assistia Cabaré da Rrrrraça do bando de teatro Olodum em Salvador. Texto de Marcio Meirelles e dos atores do bando do teatro Olodum. Em determiada a parte do espetáculo algumas piadas racistas são proferidas por uma atriz e tem resposta de todos o grupo teatral.

Atriz: Branco correndo é atleta, preto correndo é ladrão

Elenco:  É O CARALHO!

Nas primeiras piadas o público ria. Conforme os É O CARALHO ficava mais enérgico a ficha ia caindo até que se chega a um ponto de silencio total e reflexão. Racismo é crime, racismo não tem graça.

Identidades são historicamente produzidas. A branquitude tem origem europeia, detém o poder hegemônico e atua como parâmetro universal. A eles são atribuídos predicados positivos como superioridade cultural, beleza estética, integridade moral sucesso econômico e sexualidade sadia e a negritude é associado o exato oposto. 

Mas por quê? Por dinheiro e por maldade. Para roubar o território, saquear riquezas, transformar o homem em moeda... Exploração banhada de morte, tortura, barbárie justificada através da razão e da fé cristã e atestando que as pessoas de Áfricas não eram se quer humanos e que todo tratamento sádico a eles destinados era uma forma de “salva-los” pois eles eram “inferiores”.

Racializar grupos humanos tem o foco no exercício de poder e atende aos interesses dos grupos dominantes. A circulação constante dos estereótipos ligados a raça provoca internalização das percepções negativas que operam na forma de automatismos mentais.
O humor não é neutro, ele requer uma análise mental das informações dentro de um contexto, dentro de uma dimensão emocional. O humor é malicioso ele satisfaz, leva ao gozo quando despreza aquele que não é do seu grupo racial, o humor racista encobre a agressividade em relação ao outro.  No livro são enumerados e muito bem descritos os mecanismos psicológicos do humor.

O humor racista existe para manter a ordem social e perpetuar o sistema de opressão. Ferir a dignidade e a honra do outro com propósitos bem definidos. Pessoas brancas tem privilégios materiais e simbólicos mesmo sem esforço pessoal, desde que a estratificação racial seja mantida.
 A desqualificação da mulher negra e do homem negro são artimanhas para que não haja oportunidade de mobilidade social. O lugar do negro é bem demarcado e através dos estereótipos essas mensagens são repassadas infinitamente.

A pouco passei por uma situação onde uma mulher branca comemorava que havia conseguido uma foto com uma mulher negra já idosa e ela estava sorrindo. Os nosso mais velhos não sorriem em fotos porque os racistas sempre os ridicularizavam pela cor da gengiva, formato da arcada dentaria sempre fizeram piadas no intuito de os assemelhar a animais e isso interferiu no comportamento onde não sorrir tornava-se regra. 

O racismo recreativo tem como função diminuir a possibilidade de tensão entre grupos raciais e manutenção dos privilégios. Opera criando mecanismos culturais e legais para impedir a mobilização política em torno da questão racial. Não é um mero insight cômico.

A televisão tem sido um dos maiores meios de propagação do racismo recreativo. O livro faz uma analse cirúrgica de alguns personagens como Tiao Macalé, Mussum, Vera Verão e a Adelaide.

E o nosso sistema jurídico? Formado por pessoas brancas que se beneficiam dos privilégios herdados pela manutenção histórica de hierarquização de raças, tentam de  forma infame alegar que injurias raciais em forma de humor não tem danos, o ato racista aos olhos dos juristas brancos se tornam uma mera expressão de humor. 

O Racismo recreativo é a ferramenta base nas instituições de trabalho eu NUNCA trabalhei em algum lugar que não fizessem “piada” com o meu cabelo, o tamanho da minha bunda e minha suposta voraz sexualidade. Diversas vezes fui humilhada em público e isso interferia diretamente na minha autoestima, desempenho e produtividade pois eu tinha que sorrir e seguir trabalhando. A não valorização das queixas quando o racismo vem transvestido de humor faz parte do pacto narcísico da branquitude. Os mais altos postos de trabalho são ocupados por pessoas brancas que assim como os Juízes, desembargadores alegam que era apenas uma “brincadeira”

E nós negros como ficamos?
Somos acometidos por danos psicológicos significativos. Somos submetidos a alterações físicas imediatas como aumento da pressão sanguínea, aumento da respiração e comportamento agressivo. Baixa autoestima, diminuição da aspiração pessoal e comportamentos depressivos. Medos patológicos e retraimento social. Afastamento do grupo social e afastamento de si mesmo. Podendo chegar a uso de drogas ou desenvolver sintomas psicossomáticos. Perdas pessoais e materiais, perda de emprego. Temos dificuldade na formação de nossa identidade. Um erro cometido por uma pessoa negra é associado a toda comunidade “nego não presta”. Tentam estipular que somos destinados ocupar posições subordinadas. Somos comparados a animais. Difundem que não somos capazes de se comportar de forma racional. Massiva discriminação de nossa estética.  Somos associados a periculosidade, criminalidade e ausência de caráter. Somos associados a feirura... tudo em forma de humor. 

E por favor, leia o livro e nunca mais repita que não pode ser racista porque tem amigo negro. 

Nós negros temos o direito de clamar pela nossa integridade, de termos nossa dignidade preservada e de gozar de estima social. Temos o direito de ter nossa reputação preservada, nosso orgulho pessoal.

O termo Racismo recreativo foi cunhado pelo autor e por suas palavras representa uma forma de política cultural que tem um objetivo especifico: Perpetuar a concepção de que minorias raciais não são atores sociais competentes.





Que homem lindo


3 comentários:

  1. Parabéns pela maravilhosa reflexão a respeito do livro. Vou incluir na minha lista de leituras para esse ano. 🥰💪🏿🙋🏿‍♀️

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  2. Querida muito grata por essas reflexões. Que ótimo que tem esse trabalho maravilho, que estimula a leitura ... da vontade de seguir vendo o mundo por outros olhares.

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  3. Que trabalho lindo, Rose! Estudamos juntas , convivi com vc e lembro bem do seu olhar sempre tristonho. Dona Izaura... AFF!! Uma mulher infeliz....

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