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31 março 2020

Martinho da Vila Reflexos no espelho

O livro não é apenas sobre Martinho da Vila, é um aulão detalhado sobre a cultura brasileira. A autora começa nos dando uma visão sobre o processo civilizatório brasileiro africano que é e marcada pela invisibilidade. 

De caráter comunitários irmandades e sociedades negras foram fundadas. A religião de matriz africana fizera parte do alicerce para a construção da nação brasileira. Negros baianos livres e seus descendentes migraram para o Rio de Janeiro abrindo as primeiras casas de candomblé.  Os saberes tradicionais estavam sempre ali para prestar socorro na ausência de assistência médica nas favelas. 
Dr Theodora didaticamente nos trás uma gama de conceitos das manifestações culturais e religiosa do Brasil: Favela, cordões, formação das escolas de samba, o significado de cada componente, significado da alas, o samba enredo e suas mudanças ao longo do tempo, Folia de Reis, resenha da historia da Vila Isabel, o jongo, congada, religiões de matriz africana, o poder feminino, significados das comidas nos festejos. A contextualização histórica desse livro é esplendida.

Martinho Jose Ferreira conhecido como Martinho da Vila nasceu em 1938 em Duas Barras - RJ, local envolto de muita cultura negra e de culto a ancestralidade. Foi ainda pequeno para o Rio de janeiro e se consagrou no bairro de Vila Isabel. Primeiro bairro planejado do Rio de Janeiro de nome em homenagem a princesa Isabel que promulgou no dia 28 de setembro a Lei do Ventre Livre libertava as crianças negras nascidas a partir daquela data, mas as deixava sob tutela de seus senhores até os vinte e um anos em regime de escravidão. 

Casou-se três vezes. Hoje está casado com Cléo, a pretinha, a quem ele dedicou a música Que preta, que negâ.  Ela tinha 15 anos quando se conheceram, de Porto Alegre, participou de um dos seus clip. Pegou o telefone dela, ligou incessantemente então  vai a  Porto Alegre encontra-la. Se encontraram em seu hotel,  marcaram de sair pra jantar. Ele tentou beija-la e ela pensou “Nunca beijei um preto na minha vida. E agora meu Deus? Ele insistiu e foi carinhoso, mas Cléo só beijava de boca fechada.  Em vários encontros eram apenas beijos que chegava a machucar os lábios porque ela usava aparelho. Cleo chegou a pensar que ele era gay. E com ela Martinho se casou no civil e no religioso.

 Aos 13 anos Martinho já participava de escola de samba. Aos 16 compôs seu primeiro samba enredo. Na primeira década de sucesso ajudou na transformação cultural do país incluindo a mudança no estilo dos sambas enredo.  Em foi 67 se classificado no festival da Record com um partido alto. 

Recebe negativa de um projeto com vários sambistas. O humorista Serginho do Porto vulgo Stanislaw Ponte Preta na mesma época fez uma peça em cima do samba  “Samba do crioulo doido”, um espetáculo recheado de racismo recreativo qual o foco era desqualificar os sambistas negros. Martinho reagiu e montou o espetáculo Nem todo crioulo é Doido.

Stanislaw Ponte Preta
Vila Isabel Escola de coração de Martinho foi fundada em 1946. Confesso que já foi minha escola xodó (eu sou Salgueirense) mas ... Meu ranço começou em 2017 quando a escola colocou na avenida o abre alas que era  um navio negreiro hitech conduzido por uma mulher branca, um tumbeiro  com muita luz, arejado e com alegria porque já chega de dor, segundo as palavras de Fátima Bernardes, em 2019 o enredo foi princesa Isabel, e ao invés de contextualizar a escravocrata entoaram “ Viva a princesa e o tambor que não se cala. É o canto do povo mais fiel. Ecoa meu samba no alto da serra. Na passarela, os herdeiros de Isabel”, herdeiros de Isabel??? E pra fechar em 2020 o enredo foi Brasília e eu me recuso a comentar. 

Martinho é um artista que leva o Brasil para o mundo. Conexão forte com o continente africano onde foi várias vezes e tantas outras trouxe artistas Angolanos para parceria nos palcos no Brasil. Percorreu a Europa, gravou em Frances. Inovou a capa de seus discos com projetos gráficos bem elaborados. Sempre muito inovador.

Um dos principais contribuintes para a formação de nossa identidade negra. Sua marca era exaltar nossa herança africana, nas suas composições pudemos ter contato com os tambores, a religião, o idioma, culinária, costumes, todo tipo de influência civilizatória é possível encontrar em sua arte ao longo de sua vida. Se declara não conhecedor profudamente de religião, quando precisa para o trabalho recorre a pesquisadores.

Dr Helena Theodoro
Cantor, compositor, produtor, escritor, Doutor Honoris Causa, empresário. UM GÊNIO. 

Não tem problema para falar bem de si mesmo, se auto elogia sem acanhamento. 

Em sua trajetória fez muitas parcerias quase todas com homens, lançou Jorge Aragão e Almir Guineto e muitos outros. Fez uma música a pedido de Alcione que já era famosa, compos para Jacira Silva, mas que veio a falecer antes de gravar.

Tem uma história que ele estava em são Paulo e junto com Joao Bosco foi de bar em bar, passou por um bar cheio de “piranhas” e foi para outros. A procura de um taxi passou por uma baiana quituteira que vendia cocada batucando com as mãos e cantando vários sambas roda que ele não conhecia, fiquei super mega ansiosa pelo fim da historia achando enfim ele voltaria a procurar a baiana e propor parceria de composição ou lançar a baiana como ele fez com muitos homens mas não rolou. Ele pegou o insight e compôs com o Joao Bosco.


Martinho teve seus momentos meio weird fez um samba em homenagem a menarca da filha, em outro chamado mulata faceira dizia que ela fazia de tudo pra o agradar, mas ela vacilou e ele castigou, declarou em 1986 que pagode sem mulher dando sopa não da pé e só fica realmente “da pesada” quando rola uma sopa com varias colheres no mesmo prato.
 
Martinho é como se fosse da minha família cresci ouvindo suas músicas. Não havia um almoço de domingo ou dia de arruma a casa que esse vinil não tocasse repetidamente. Uma lembrança engraçada é que no ensino médio eu tinha uma amiga chamada Alba Valéria que tinha uma tia que era obcecada pelo Martinho e o comentário dessa tia era que Martinho catava muito sexy, parecia eu ele estava gozando em cada melodia. Experimentem ouvir Malandrinha e depois me falem se concordam.

 Cantamos para difundir a oralidade, pra trabalhar, pra nos divertir, de tristeza... segue a dica do Martinho: Canta, canta, minha gente.

Martinho da Vila




30 março 2020

A escravidão no Brasil

Livro de Joel Rufino dos Santos, Escritor, Historiador, Doutor em Cultura pela UFRJ. Pertencente a uma coleção Como Eu Ensino que propõe a professores novas abordagens sobre antigos assuntos.

A proposta de repensar a forma de ensinar sobre escravidão tomou força com o movimento negro e organizações de ações antirracistas. O autor sempre usa a palavra “descoberta” entre aspas (foi invasão).

O livro fala sobre os vários tipos de escravidão, a dos chineses, incas, bantos, grego e outras. Chama a atenção para não se ensinar sobre a escravidão exclusivamente como um fato econômico, mas sim como capítulo da história mundial do trabalho. 

Ao se estudar sobre a escravidão o constrangimento em sala de aula é incomensurável para o aluno negro. O reforço do lugar de vitima e de derrotado não pode ser a historia única. O negro Africano ou brasileiro é o civilizador do país e não exclusivamente uma vítima. 

Na idade moderna a escravidão se tornou a principal forma de trabalho com o uso de mecanismos de tortura sistemática.

Açoite

Anjinho
Pelourinho








Mascara de Flandres

Esses aparatos eram usados em via pública e a sociedade cristã escravocrata assistia de forma indiferente ou de forma entusiasmada com direito a aplausos.

Essa indiferença/satisfação é uma das heranças da escravidão. O que gerou mais comoção? Ciclone tropical Idai que assolou Moçambique ou o incêndio da catedral de Notre-Dame ? O que teve mais cobertura Jornalística? Atirador de Las Vegas ou COVID 19 no continente Africano?

Vídeos de “esculachos” com tortura física e psicológica a um corpo negro e pobre culpado ou não, são populares entre os “cidadãos de bens”, porém 117 fuzis (a maior apreensão de arma da história do Rio de Janeiro) em um condomínio de luxo não  desperta a mesma bile por justiça feita pelas próprias as mãos. O autor nos chama a reflexão de quando falamos “torturaram um inocente” estamos naturalizando que pra alguém a tortura é válida e essa é  mais um herança da escravidão.

O trabalho braçal ficou tão estigmatizado que há quem considere até os dias de hoje um ato humilhante carregar um saco de embrulho, lavar a própria roupa, limpar própria privada ou criar o próprio filho.

O negro africano é retratado nos livros apenas como um animal de tração e operário de enxada. São omitidos ou não valorizados que a mineração de ferro no Brasil só foi possível pela expertise do povo Africano, assim como a criação de gado e o que há de principal na culinária. Uma infinidade de ocupações e ofícios chegaram ao Brasil através da escravidão.

Crianças negras eram usadas como brinquedos chamados leva-pancadas onde a criança branca por diversão reproduzia  o que os adultos brancos faziam a corpos negros. O sadismo o gosto violento ou perverso era alimentado desde a infância e adolescência. 

O cônego Jácome de Queiroz confessou que levou a sua casa uma menina que estava vendendo peixe pela rua, teria de 6 a 7 anos, e por engano ele a corrompeu pelo traseiro. Um fatos históricos horrendo.

A escravidão foi pautada na exacerbação da violência e da crueldade, desterro de milhões de pessoas, genocídio ameríndio.

O maior comerciante de escravo foi o Chacha. O negro Africano participou do tráfico e os retornados também mantiveram o tráfico de escravos como negócio.

O escritor James Baldwin em 1950 visitou a porta do não retorno em Senegal. Ele, homem negro em diáspora indignado com a crueldade do tráfico e com lágrimas nos olhos disse: “Os homens só se diferenciam pelo tamanho de sua maldade.

A resistência a escravidão existiu em todos tempos e deve ser explorada em sala de aula. Rebeliões armada ou muda, sabotagem do trabalho, aborto, infanticídio, suicídio, assassinato dos senhores, feitores, eu incluo sincretismo religioso, a amizade e família ...

 Os Quilombos são retratados na história como “local de fugidos”, porém fuga é resistência e não acomodação e Quilombos são sociedades complexas, autônomas que aceita todas as etnias e não compactua com a forma de produção econômica europeia. Nesse sistema social todos trabalham e todos tem acesso a alimento e moradia.

Sociedades, organizações secretas, clubes, foram fundadas. A organização mais antiga e que existe até hoje é a Sociedade Protetora dos Desvalidos, de 1833. Vale a pena pesquisar sobre. 

O autor citou um fato, Bob Kennedy esteve na PUC/RJ em 1965 e foi instigado a explicar o racismo em seu país, Estados Unidos. O então irmão do presidente dos EUA volta com uma outra pergunta: “Não vejo nesta reunião nenhum negro sequer”. Essa passagem é importante para se debater em sala de aula pois reproduz o comportamento do brasileiro que se apega a democracia racial para não pensar os próprios privilégios e omitir as desigualdades sociais pautados na raça. No Brasil racista é sempre o outro.

O livro é cheio de bizus e dicas para professores de todas as áreas não só os de história de como repensar a forma de ensinar sobre a escravidão. Dados omitidos devem ser explorados, autores negros devem fazer parte da bibliografia. Não é uma caça a culpados, mas uma nova forma de falar o que aconteceu.

Funciona como um guia. Cada capítulo se encerra com sugestões bibliográficas para se aprofundar no assunto falado.

Joel Rufino dos Santos




29 março 2020

Racismo Recreativo

Um inferno chamado: Cunhã, vai buscar minha chinela.

Minha infância foi bem marcada por essa personagem que hoje se quer consigo achar seus nomes nas redes. Cunhã era uma criança preta retinta que fazia parte de um quadro de “humor” do tão consagrado humorista. Um homem branco que fazia Black face e satirizava a religião de matriz africana. Ele tinha a seu lado as filhas de santo, mulheres negras que apareciam limpando, com vassoura na mão. Painho era a performance de um Babalorixá gay, com ávido apetite sexual e que para seu prazer humilhava essa menina preta a Cunhã. A menina preta fazia uma pergunta simples que era respondido com arrogância e hostilidade de painho, quando não acrescido de ameaças de violência física, mas tudo de forma “cômica”. 

O humor televisivo se repetia na vida real, no meu ambiente escolar estão as minhas piores memórias. Dias seguidos a apresentação do programa eram tomados de muita angústia porque eu sabia que chegaria na escola e seria chamada de Cunhã, seria humilhada e ameaçada. Mas tudo de “brincadeira”. Meu comportamento foi se moldando, nem pensar em fazer alguma pergunta a professora. Eu era tomada por ansiedade, insegurança e medo.

 Não me esqueço de uma servente, dona Izaura, uma mulher negra que se compadecia. Ela tinha uma barraca de doce dentro da escola e quando começavam as agressões racistas ela me abraçava e me colocava pro lado de dentro da barraca, nunca trocamos uma palavra sobre o assunto era só um abraço e o asilo e lágrimas contidas. E em casa eu tinha medo de contar aos meus pais, afinal a errada era eu, eu é quem ao sabia “brincar direito”.

O livro Racismo recreativo foi lido com um nó na garganta. Retinta, crespa e gorda. Eu tinha a tríade pra não ter um dia de paz. Mas era tudo “brincadeira” e eu então achava que estava paranoica. 

Obrigada Adilson, não era paranoia. Era racismo.

O racismo tem pluralidade de significados aversivo, simbólico, institucional. Tudo é criteriosamente detalhado no livro.

Além de livros minha outra paixão é o teatro. A mais de uma década eu assistia Cabaré da Rrrrraça do bando de teatro Olodum em Salvador. Texto de Marcio Meirelles e dos atores do bando do teatro Olodum. Em determiada a parte do espetáculo algumas piadas racistas são proferidas por uma atriz e tem resposta de todos o grupo teatral.

Atriz: Branco correndo é atleta, preto correndo é ladrão

Elenco:  É O CARALHO!

Nas primeiras piadas o público ria. Conforme os É O CARALHO ficava mais enérgico a ficha ia caindo até que se chega a um ponto de silencio total e reflexão. Racismo é crime, racismo não tem graça.

Identidades são historicamente produzidas. A branquitude tem origem europeia, detém o poder hegemônico e atua como parâmetro universal. A eles são atribuídos predicados positivos como superioridade cultural, beleza estética, integridade moral sucesso econômico e sexualidade sadia e a negritude é associado o exato oposto. 

Mas por quê? Por dinheiro e por maldade. Para roubar o território, saquear riquezas, transformar o homem em moeda... Exploração banhada de morte, tortura, barbárie justificada através da razão e da fé cristã e atestando que as pessoas de Áfricas não eram se quer humanos e que todo tratamento sádico a eles destinados era uma forma de “salva-los” pois eles eram “inferiores”.

Racializar grupos humanos tem o foco no exercício de poder e atende aos interesses dos grupos dominantes. A circulação constante dos estereótipos ligados a raça provoca internalização das percepções negativas que operam na forma de automatismos mentais.
O humor não é neutro, ele requer uma análise mental das informações dentro de um contexto, dentro de uma dimensão emocional. O humor é malicioso ele satisfaz, leva ao gozo quando despreza aquele que não é do seu grupo racial, o humor racista encobre a agressividade em relação ao outro.  No livro são enumerados e muito bem descritos os mecanismos psicológicos do humor.

O humor racista existe para manter a ordem social e perpetuar o sistema de opressão. Ferir a dignidade e a honra do outro com propósitos bem definidos. Pessoas brancas tem privilégios materiais e simbólicos mesmo sem esforço pessoal, desde que a estratificação racial seja mantida.
 A desqualificação da mulher negra e do homem negro são artimanhas para que não haja oportunidade de mobilidade social. O lugar do negro é bem demarcado e através dos estereótipos essas mensagens são repassadas infinitamente.

A pouco passei por uma situação onde uma mulher branca comemorava que havia conseguido uma foto com uma mulher negra já idosa e ela estava sorrindo. Os nosso mais velhos não sorriem em fotos porque os racistas sempre os ridicularizavam pela cor da gengiva, formato da arcada dentaria sempre fizeram piadas no intuito de os assemelhar a animais e isso interferiu no comportamento onde não sorrir tornava-se regra. 

O racismo recreativo tem como função diminuir a possibilidade de tensão entre grupos raciais e manutenção dos privilégios. Opera criando mecanismos culturais e legais para impedir a mobilização política em torno da questão racial. Não é um mero insight cômico.

A televisão tem sido um dos maiores meios de propagação do racismo recreativo. O livro faz uma analse cirúrgica de alguns personagens como Tiao Macalé, Mussum, Vera Verão e a Adelaide.

E o nosso sistema jurídico? Formado por pessoas brancas que se beneficiam dos privilégios herdados pela manutenção histórica de hierarquização de raças, tentam de  forma infame alegar que injurias raciais em forma de humor não tem danos, o ato racista aos olhos dos juristas brancos se tornam uma mera expressão de humor. 

O Racismo recreativo é a ferramenta base nas instituições de trabalho eu NUNCA trabalhei em algum lugar que não fizessem “piada” com o meu cabelo, o tamanho da minha bunda e minha suposta voraz sexualidade. Diversas vezes fui humilhada em público e isso interferia diretamente na minha autoestima, desempenho e produtividade pois eu tinha que sorrir e seguir trabalhando. A não valorização das queixas quando o racismo vem transvestido de humor faz parte do pacto narcísico da branquitude. Os mais altos postos de trabalho são ocupados por pessoas brancas que assim como os Juízes, desembargadores alegam que era apenas uma “brincadeira”

E nós negros como ficamos?
Somos acometidos por danos psicológicos significativos. Somos submetidos a alterações físicas imediatas como aumento da pressão sanguínea, aumento da respiração e comportamento agressivo. Baixa autoestima, diminuição da aspiração pessoal e comportamentos depressivos. Medos patológicos e retraimento social. Afastamento do grupo social e afastamento de si mesmo. Podendo chegar a uso de drogas ou desenvolver sintomas psicossomáticos. Perdas pessoais e materiais, perda de emprego. Temos dificuldade na formação de nossa identidade. Um erro cometido por uma pessoa negra é associado a toda comunidade “nego não presta”. Tentam estipular que somos destinados ocupar posições subordinadas. Somos comparados a animais. Difundem que não somos capazes de se comportar de forma racional. Massiva discriminação de nossa estética.  Somos associados a periculosidade, criminalidade e ausência de caráter. Somos associados a feirura... tudo em forma de humor. 

E por favor, leia o livro e nunca mais repita que não pode ser racista porque tem amigo negro. 

Nós negros temos o direito de clamar pela nossa integridade, de termos nossa dignidade preservada e de gozar de estima social. Temos o direito de ter nossa reputação preservada, nosso orgulho pessoal.

O termo Racismo recreativo foi cunhado pelo autor e por suas palavras representa uma forma de política cultural que tem um objetivo especifico: Perpetuar a concepção de que minorias raciais não são atores sociais competentes.





Que homem lindo


15 março 2020

Yabá - Mulheres Negras.

Laroiê Exu!

Após pedir licença o espetáculo se inicia. Muito há para se dizer, as palavras não se esgotam (literalmente).

A ancestralidade guia o espetáculo. A energia da Yabás nossas Orixás femininas flui e nos encanta, o bailar hipnotizante só é interrompido pelas denuncias necessárias. 

Temos que falar!

A transformação do silêncio em linguagem e em ação foi a arma de Audre Lord, ela usou a visibilidade linguística para partilha da dor e da resistência. Também nos alertou que fomos socializadas a respeitar mais o medo do que nossas necessidades de linguagem e significação, dai eu reflito que nossas dores devem ser mais do que um nó sufocante na garganta, devem ser o ponto de partida para o diálogo e o autocuidado, seja na terapia seja no candomblé. 

Escutem as suas mais velhas. Se alguém lhe oferecer alguma coisa boa, aceite, não espere a pessoa insistir, somos merecedoras.
A mulher negra traficada atravessou o atlântico forçosamente nos porões dos tumbeiros. Sempre mostrou a sua resistência. Mary Karasch falou que as mulheres eram separadas dos homens pois elas incentivavam os motins. Não havia amenização dos castigos físicos e psicológicos, inclusive fora criado instrumentos de tortura para grávidas com o intuito de não afetar a “peça” que estava em seu ventre. O suicídio e infanticídio também foram formas angustiantes que muitas mães livraram seus filhos das barbáries da escravidão. O rendimento conseguido enquanto escrava de ganho era usado para alforria dos seus iguais. O Brasil lidera o ranking de países que mais mata travestis e transexuais em todo o mundo. Mulheres pretas e pardas, além de um pré-natal com menor número de consultas e exames, vinculam-se menos à maternidade para o parto e recebem menos orientações, o que resulta em maior peregrinação para parir, recebem menos anestesia local para episiotomia, ausência de acompanhante quando comparadas a mulheres brancas. Mulheres negras são em maior número que chefiam seus lares com empregos informais. Somos “quase da família”, praticamente uma mãe, mas não estamos no testamento, no plano de saúde, não botamos os pés no sofá ou escolhemos o canal da televisão. 

 Temos que falar!

É tanto desrespeito a nossa existência que experimentamos a irresponsabilidade afetiva até dos nossos.  Lares desfeitos, foi um plano colonial e temos que nos apropriar desse saber para nos unir em transformação e revolução.

RESPIRA! Não é nossa culpa. Não temos que ser forte o tempo todo e fraca nunca fomos. Vamos juntas repensar nossa (res) existência. Vamos ampliar o amor.

Toda essa dor não é a nossa essência. A ambição do branco europeu interrompeu a nossa história, mudou a nossa trajetória.

Família é nossa essência, Quilombo, Candomblé, Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, Escola de Samba, Didas Bar, Pretas Cervejeiras, Sociedade dos desvalidos, Mães de Manguinhos, Coleção Feminismos plurais, Donas, Yoni das Pretas, Mulherismo, Movimento Internacional Madalenas - Teatro das Oprimidas, Ilê Aye ... NÓS MATRIGESTAMOS POTÊNCIA.

Nada sobre nós sem nós

O texto do espetáculo é de Maíra de Oliveira e Direção de Luiza Lorosa. Obrigada pretas.  

*Aguardem o retorno das salas de teatro para salas das novas datas.



14 março 2020

Cartas para a minha mãe


Ledo engano quem pega o livro e diz: é só mais um romance.

Toda a minha subjetividade de mulher negra foi sacolejada. 

A história é situada em Cuba e é uma coleção de cartas que uma menina preta escreve para sua mãe que está no Orum. 

A diáspora negra é algo que mexe comigo, podemos estar com um oceano de distância, mas os nossos atravessamentos são muito semelhantes. 

A construção do imaginário do que é ser negro dentro da concepção racista e colonizadora é tão bem sedimentada que ultrapassa fronteiras. O racismo e as suas sequelas não nos dão paz em nenhum lugar do mundo. 
É um “manual” muito bem escrito e disseminado. Está na televisão, filmes, nos livros, na professora, no casamento, no melhor “amigo”, no patrão... todo mundo sabe qual é o “lugar de preto” e unem força pra que não saiamos de lá.

Mas Teresa de Cardenas na sua inquietude por não ver personagens negros como protagonista, usa as palavras como ferramenta de liberdade. Não é um livro amargo, é um livro verdadeiro, são palavras e sentimentos que tinham que ser expressados por uma mulher negra. No meio de tanta dor, há muito amor. Amor é a essência preta.

Protagonismo totalmente feminino, o amor de mãe, amor da vizinha, a descoberta do amor pela prima e pela avó, a admiração pela professora... tudo vai se construindo. 

O livro começa com um sonho, o sonhar com a mãe é um misto de alegria e tristeza. 

A minha mãe foi para o Orum quando eu tinha 16 anos, levei muito tempo pra sonhar com ela, eu acho que eu não conseguia por causa ansiedade, eu já dormia desejando e acordava chorando e frustrada porque não acontecia. Um belo dia rolou, foi lindo, mas foi triste porque acabou.  

O colorismo é fruto do racismo.  Em um universo onde tudo que é negro é demonizado, ser “menos negro” pode ser uma “benção” e também um meio de oprimir quem não teve a mesma “sorte” (aumentem as aspas, aumentem muito, pesei as palavras, mas acho que vocês vão entender).

 Brasil foi colonizado por Portugueses e Cuba por Espanhóis. Lá deve ter ocorrido o mesmo que aqui, uma miscigenação a base de estupro das indígenas e das Africanas traficadas para serem escravizadas.   É neste misto de cores resultantes, que o racismo cega. Muitos, só na idade adulta reconhece sua identidade negra. Tornar-se Negro de Neusa Santos Souza é pra mim, o escrito sagrado da descoberta da negritude enquanto identidade, o branqueamento é uma das estratégias racistas para hierarquizar as pessoas.

A personagem lamenta por ser a mais preta e fala de uma amiga de pele clara que tem vergonha do pai retinto.   Foi em Cuba, mas acontece em qualquer esquina daqui.

A chance de ter filhos frutos de um relacionamento inter-racial é uma das soluções pensada pela avó retinta, ela quer o melhor para os seus e o melhor é não gerar filhos tão negros assim. A avó sabe o peso da melanina que ela carrega. Vai lá em Neusa Santos, ela fala muito bem sobre isso. 

É na infância que começam os apelidos. O primeiro que impactou a personagem foi o de beiçuda. 
Lembro que em toda a minha infância meus traços negróides eram usados contra mim. O tamanho da minha bunda, meus lábios carnudos, a largura do meu nariz, meu cabelo crespo, o meu tom de pele, meu tom de voz, tudo que me compunha aos olhos do Outro estava errado. E a personagem que passa isso faz uma reflexão que um dia também já foi minha: Se Deus existe, com certeza esta furioso de ouvir tanta gente criticando sua obra”

Uma família só de mulheres, sem a presença de maridos e pais.

Os saberes tradicionais de matriz Africana através de uma mulher sacerdote, convocada no momento de doença. Ritual sagrado com ervas, flores, matança, transe, charutos... tudo o que for necessário para ajudar Lilita e agradar Obaluaê. O santo foi feito.

O preterimento e violência a mulher negra também é pautado. O abuso sexual a menina preta. A personagem principal encontra um jeito de proteger a sua prima que é criança e acamada por um problema de coluna. 

A avó está contaminada por uma amargura que parecia sem fim, mas teve fim. 
As constantes agressões a essa neta, a transferência de todo seu ódio a uma criança. bell hooks já falou sobre essa questão, a violência que os pais submetem as crianças.  A violência como forma de controle social doméstico e a aceitação da comunidade. Nós crescemos em famílias que naturalizaram a ideia de que a violência é resposta apropriada para lidar com crises. 

Então eu refleti, quem nunca ouviu falar de pais que espancaram seus filhos para o seu bem, para que ele estude, pra que não saia de casa, para que não engravide, para ajudar nas tarefas de casa... No contexto histórico racial a criança preta não foi poupada pelo branco escravizador. N
o Congo por exemplo se decapitavam  mãos e pés de crianças como forma de castigo, o estupro a menina negra, o espancamento do menino negro eram estratégias de sadismo e controle.
Livro forte, impactante, verdadeiro. 
Uma história de amor no meio de muita dor. Porque sim, o amor é essência Africana.

Teresa Cárdenas Angulo é uma escritora, roteirista, atriz, bailarina e ativista social cubana. Sua motivação para tornar-se escritora veio ainda na infância, quando começou a ler e ficou frustrada com a ausência de personagens negras nos livros infantis.





11 março 2020

A paz dura pouco

Do jeito que eu gosto!

O romance se passa no ano de 1956 na Nigéria. Inicia-se com o protagonista em um tribunal. 
Obi Okonkwo é um jovem lindo, inteligente, vinte e poucos anos, de família cristã, tinha um irmão mais novo que ele pagava os estudos e algumas irmãs casadas.  De família simples.  

Devido a tradição Africana onde todos se unem em pró dos seus, obteve ajuda da sua comunidade para estudar na Inglaterra. A tradição era de contribuir não só com a parte financeira, mas com toda a logística em outras cidades, roupas, alimentos e principalmente bênçãos. 

Estudar na terra dos brancos significa um alavancar de vida. O livro deixa entendível que não era uma prática numerosa e nem uma obsessão, mas sim oportunidade de o aprender a língua do colonizar e estudar na terra dele, mas com o propósito de retornar pra casa onde se ocuparia um cargo público com boa remuneração e oportunidade para ajudar a família. O salário de um mês de um funcionário do governo poderia equivaler a um ano de rendimento de um morador local. A desigualdade social denunciada nesse livro me faz lembrar o Brasil de HOJE, um dos países mais desiguais do mundo. 

Deixar um filho terra cruzar o oceano não é uma decisão muito fácil. Há medos! Medo de que o filho se case com uma mulher branca, medo de que não retorne a sua terra, medo de que volte totalmente absorvido pela cultura do branco. 

O enredo é sensacional, passeia pelas suas relações familiares, amizade e romântica. Seu par, a Clara, tem grande mistério (pesquisei e fiquei curiosa se ainda se mantém).

A força e sofrimento da mulher negra é pautada na história. Ta osso pro nosso lado!

A família, pai e mãe, seguem a religião católica dotada de um fanatismo que já vi exemplificado em outras histórias Nigerianas. E sim seu pai também tem um grande segredo.

Para os Nigerianos tudo era partilhado. Momento dor, doença, fartura, alegria. Em dado momento eu julguei com a minha realidade de vida e achei que havia intromissão demais. Mas logo me toquei que eu não tenho que achar nada. 

Com altos e baixos, com escolhas certas e erradas o livro caminha em turbilhão de emoção envolvendo problemas familiares, financeiros, morte, separação, crime...

A tradição Nigeriana é colocada em contraponto a cultura europeia. 

Há denuncia a corrução. 

E nós? Nós temos preço? Qual a hora de parar?


Romance de Chinua Achebe Chinua, romancista, poeta, crítico literário e um dos autores africanos mais conhecidos do século XX. Achebe escreveu cerca de 30 livros (romance, contos, ensaio e poesia), alguns dos quais retrataram a depreciação que o Ocidente faz sobre a cultura e a civilização africanas, bem como os efeitos da colonização do continente pelos europeus, mas também escreveu obras abertamente críticas à política nigeriana. (wikipedia)

Maldito capitalismo que não me deixa parar de sonhar com uma camisa da seleção da Nigeria 




06 março 2020

Carnaval, saúde, e identidade negra.

Assistir uma aula magna com a Doutora Helena Teodoro é um presente divino. Ouvi-la nos leva a um estado de transe onde se é possível conectar a energias. A paz se instaura e a alegria reverbera.
Afrocentricidade é outra forma de ver o mundo. “Cozinhar, é pegar o que está morto e dar vida”. São tantos os conceitos que a Doutora nos presenteia que ampliamos o nosso modo de existir. 
Olodumaré é Deus único supremo, onipotente, é a manifestação material e espiritual é o criador de tudo que existe. O Deus Africano cria tudo, cria todos os espaços.
Os orixás são elementos da natureza, somos pai, mãe, território.

Os orixás são masculinos e femininos que não significam que sejam homens e mulheres.

Com início em 1929 através de uma disputa promovida por um pai de Santo o Zé Espinguela nasce o desfile das escolas de samba. As cores das primeiras escolas eram: Conjunto Oswaldo Cruz – o azul e branco; Mangueira- o verde e rosa da e o Estácio - vermelho e branco. As cores, representam a comunidade.
A bandeira representa os valores do território. A porta bandeira, uma mulher jovem, simboliza a reprodução. O bailar do mestre sala representa o jogar das sementes. Nos preparamos para criação.

O Salgueiro, escola de coração da professora, surgiu em 1953 da fusão de três outras escolas do morro do Salgueiro - a Azul e Branco, a Unidos do Salgueiro e a Depois Eu Digo. Em torno da pedra de Xangô, seu elemento natural, as escola se unem e mostram a religiosidade que os pais de santo criavam. 
O professor Júlio Machado, um homem branco, foi convidado por um de seus alunos para desfilar no Salgueiro. Fantasiou-se pela primeira vez como o orixá Xangô e repetiu o feito por 37 anos consecutivos e passou a ser conhecido como Xangô do Salgueiro.

A maneira de dançar das passistas, os gestos com as mãos colocando tudo para fora se remete a dança de Iansã. A dança com os braços a ocupação do espaço.

As manifestações populares em todo o brasil têm elementos das danças dos orixás. O Frevo, Maracatu, Jongo, Coco...

A cultura negra é a única que tem sons masculinos e femininos.

O Ijexá é som feminino, é música pra Oxum. O jeito de dançar é pra se deixar fluir. 
Quando a professora fala, no mesmo momento me vem a cabeça um famoso Ijexá :

“Nessa cidade todo mundo é d'Oxum
Homem, menino, menina, mulher
Toda essa gente irradia magia

Presente na água doce
Presente na água salgada
E toda cidade brilha"

A fé que temos em nós mesmo, nos da visibilidade. A tradição negra proporciona autoconhecimento e é nela que ganhamos energia para mudar o que tem que mudar. 
Em círculo temos a mesma importância. Na roda do Xirê os pretos dançam dando as mãos e recebem a função de cuidar de si, do outro e do território.
O samba era perseguido político e economicamente pois era era exercício linguagem, lugar de fala, momento de descontração, reivindicação, demonstração de amor, grito de guerra.  Era o saber ancestral sendo transmitido pela oralidade.

Mandaram de volta os retornados, mataram outros tantos, oprimiram ao máximo, mas estamos aqui resistindo.

Praça onze o ano inteiro é um lugar comum, mas no carnaval é um lugar sagrado. 

Rio de janeiro é o centro de referência de carnaval para o mundo. 

A conformação de comunidade, a música, a comida a coreografia o encontro, tudo que há na Escola de Samba oferece pertencimento e por isso vários países pelo mundo adotaram a pratica de criar agremiações para viverem esse espírito de comunidade.

A geração de emprego engloba figurinista, contador, mecânico, costureira, motorista, jornalista, engenheiro, garçom, pintor... a serviço da identidade brasileira e como expressão de poder.

Escola de samba: dança dos orixás, toque dos tambores e história. Escola de samba cria família segundo a visão africana. Escola de samba é o terreiro na avenida. A bateria é o coração da comunidade pulsando.Escola de samba é um corpo vivo.