1. 3. 4. 5. 10. 14. 19. 24. 29. 30. 31.

31 julho 2020

Racismo e fascismo & O corpo escravizado e o corpo negro

Racismo e fascismo & O corpo escravizado e o corpo negro

                Foram disponibilizado gratuitamente dois ensaios da Toni Morrison chamados Racismo e fascismo e o outro O corpo escravizado e o corpo negro. Os textos foram escritos em 1995 e 2000 respectivamente.  Ao ler tive a sensação de que eram datados a bem pouco tempo pois trata de realidades orgânicas e vivenciadas por nós brasileiros nesse tenebroso momento político.


            Toni elencou 10 passos essenciais que alicerçam da dupla inseparável: racismo e fascismo que tem a fabricação do inimigo como principal estratégia.


Na diáspora a cor da pele é quem determina quem vai morrer ou viver, de que forma e quando, como bem disse o filósofo camaronês Achille Mbembe. 

Achille Mbembe

Demonizar, mentir, criminalizar, patologizar são mais alguns itens da lista. Inviabilizar a ciência, desqualificar e destruir tudo que possa mostrar a verdade. Tudo é feito com o apoio da grande mídia que divulgando massivamente os ideais racista e fascista.  


Em minhas reflexões incluiria na lista a religião. Religiões tem servido como amuleto para justificar a maldade intrínseca do ser humano e suas ações arbitrarias. Possibilita se eximirem de culpa pois tudo é feito em nome da fé. O poder, me atrevo mais uma vez e cito o capital, é a espinha dorsal dessas ideologias. 


            E a história do povo preto? Devemos esquecer e seguir adiante ou devemos rememorar. Não pesquisar e debater sobre o que nossos ancestrais foram submetidos é o ideal?

Foto da Internet

Não para James Camaron que em 1988 inaugurou o Museu Americano do Holocausto Negro e não para Toni que foi indagada em uma entrevista se realmente é necessário que ela detalhasse em seus escritos os horrores e as barbaridades que o branco submeteu a população negra em África e na diáspora. Apagar da memória 3 séculos de horror racial e as estratégias de resistência dos nossos ancestrais em nome da paz na consciência de quem os causou é uma agressão renovada é nos mandar engolir o choro.


Toni, exausta, desabafa. Para a nossa dor não existe um lugar para que possamos chorar, deixar fluir o banzo. Não há memoriais gigantes que nos façam lembrar dos nossos e de nossa resistência. Não há lugar especifico para esse tipo de acolhimento e para prestarmos homenagens.

Museus são formas poderosas de eternizar a memória. 

James Camaron

       Abdias do Nascimento beijou o chão da serra da barriga, terra de zumbi dos palmares em 20 de novembro de 1988. O gesto foi diante de Lélia, Jose Miguel, Jesus, Abgail, Mãe Hilda, Aguinelo da Casa Branca, Edialeda e outros. E foi para lá que foram as suas cinzas. É disso que Toni está falando.

Foto da Internet

Escravidão e racismo são fenômenos diferentes. A escravidão existiu na história das civilizações em diversos povos e não era necessariamente racista. Comprar e vender pessoas era uma prática antiga. A racializaçao para a conquista do Novo mundo que transformou a história da humanidade. A demonização de traços raciais nitidamente identificáveis marcava a divisão entre escravizados. O corpo negro foi transformado em um fardo político no mundo.

Foto da Internet

Hoje a principal tecnologia do controle dos corpos negros é o encarceramento em massa. Esse método serve também para o enriquecimento do grupo dominante. Como bem disse o professor André Nicolitt, no Brasil a mesma justiça que para um crime de racismo não chega aos fins de condenação, uma acusação de crime ao patrimônio como roubo, leva ao encarceramento imediato que se mantem durante o tempo dos tramites na justiça e chega na maioria das vezes a condenação. São verdadeiras arapucas jurídicas que domina vidas e tem poder de controle social que tem foco no corpo negro.

Toni Morrison





25 julho 2020

Nada digo de ti, que em ti não veja.

Adicionar legenda

                    Eliana Alves Cruz é uma das mais importantes romancistas dos últimos tempos. Com seus escritos, ela tem o poder de nos transportar para outras épocas e contar histórias através de narradores que são estruturalmente ocultados da literatura brasileira. Ela cria em nós uma aliança e pertencimento com nossos ancestrais e fala das suas possibilidades de vida além dor do sistema escravocrata.

 

            Romance é um estilo literário que com sua narrativa nos conta uma história que nos remete ou transita por um tempo/época que são bem marcado. Nos situamos temporalmente por datas que podem ser mencionadas, mas pela ambientação, comportamento social, cultura e costumes bem definidos para a época explorada. Este livro é um romance histórico recheado de suspense.

 

            A autora explora os mistérios da vida e do amor. O narrador (a) secreto (a) é o que tudo sabe, mas está tudo em ti. 


            você, tem algo a esconder? Para quem é curiosa como eu, se seduz por esse linguarudo (a).

Foto da internet

 

O período colonial como sabemos, foi uma época de muitas tramoias. O colonizador para chegar nas américas e roubar as terras dos povos originários teve que contar muitas mentiras e manter muitos segredos. Esse mesmo grupo foi para África e sequestrou, transportou além-atlântico e explorou corpos/mentes negras. As vítimas eram infantis, jovens, femininas... Para que toda essa estrutura de dominação se mantivesse, além da brutalidade física, poder bélico, genocídio e benção cristã, mistérios e intrigas dentre o próprio grupo dominante era necessário. 

Foto da Internet

 

E aí? Confiar em quem? Estamos a salvo com nossos segredos?

 

            Duas famílias com grande poder econômico têm seus conflitos expostos. O privilégio branco e a tentativa de manter superioridade é baseada por motivos que vivenciamos até os dias de hoje que se da através da exploração e apropriação de saberes e corpos alheios.


             Genialidades são submetidas a um sistema de opressão, mas no livro a resistência não é ocultada, muito pelo contrário, as estratégias hiper criativas são surpreendentes. O grupo da resistência tem seus segredos, seus mistérios e olhos são vendados por garantia.

 

Saberes mágicos, potência estratégica, perspicácia, poder de negociação, conexão com a ancestralidade, identidade étnica, persuasão, memória de elefante, o pensar na comunidade, na partilha são algumas das molas propulsoras do grupo de escravizados narrados. O âmago para resistência é o amor. 

Foto da Internet

 

O amor é quem manda em tudo. Pela fé, pela família, pela terra mãe, pela comunidade, pelos ancestrais, pela identificação de si própria nesse mundo, pelo prazer erótico e as delícias do corpo e da carne... é assim que eles sobrevivem ao banzo. 

 

Experiências afetivas fortes e proibidas são prato cheio para o nosso fofoqueiro (a), ops, narrador (a). O medo de perder dinheiro e a moral perante a sociedade bota tudo de pernas para o ar.

Foto da Internet

 

            Ambientado no Rio Antigo e com os numerosos Africanos e afro descendentes, a cidade preta surpreende o líder religioso cristão que aporta para mais uma missão corriqueira da época, bem no estilo “ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão”. Esse que deveria ser o exemplo de integridade, esta mais para o “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”.

Foto da Internet

 

            A família privilegiada tem uma vida confortável através usurpação que lhes é peculiar, mas tudo é abalado quando sofrem ameaças de terem seus segredos revelados. 

 

            Vitória é a personificação do poder da mulher negra. É ela que com sua magia, impulsionada pelo amor que ela sente por outro, que sente por ela e que ela compartilha com seus iguais, que as histórias levam várias revira voltas. 

Foto da Internet

Zé Salavú e Quitéria são escravizados desde a infância e atam um romance quando chegam a idade da juventude e dai eles procuram meios de ficarem juntos e a liberdade da família e dos amigos é a opção principal, porém é preciso muito dinheiro pra isso.  Mergulhamos então nos bastidores da exploração econômica dos corpos negros. O sentimento de posse de seus escravizadores e a inveja também são obstáculos. Pelo meio do caminho a amizade e sororidade se tornam arma e escudo.

Foto da Internet

 

O livro é do estilo que nos consome. Ficamos curiosos a cada capítulo. É uma forma diferente e divertida onde a ficção faz contato com a história real. Relações sócias/ raciais  cheio de fofoca porque é disso que a gente gosta.

Leiam o livro!

Eliana Alves Cruz








16 julho 2020

O Tradição dos Orixás - Valores Civilizatórios Afrocentrados

Jayro Pereira

Esse livro conta a história do projeto Tradição dos Orixás, uma iniciativa coletiva lançada no final da década de 80. Descreve a trajetória do principal articulador o Professor Jayro Pereira que junto a professora Gésia de Oliveira levaram a diante o debate. Além dos relatos há um acervo de fotos, anúncios e reportagens da época e do reencontro do grupo em 2016.

 

Jayro é baiano, tinha familiares evangélicos e candomblecistas. Na infância se encantou com a organização ritual da igreja católica. Foi seminarista e no mosteiro teve a sua primeira reflexão sobre o racismo ao ler um artigo que falava do racismo na igreja. Posteriormente um outro episódio o marcou, dentre quinze seminaristas somete ele e outro jovem negro não foram escolhidos para ser enviado a Europa para fazer mestrado e doutorado. Abandonou o seminário, mas não rompeu relações com a igreja católica. 

 

A maior motivação para a formação desse coletivo foram os ataques violentos dos setores evangélicos que lançaram uma “guerra santa” onde o inimigo a ser destruído eram os adeptos da religião de matriz africana. O debate não poderia mais ficar apenas no campo religioso, precisava de um alcance político. Mãe Palmira Navarro líder do Ilé Omo Oya Leji protagonizou um episódio marcante quando processou a igreja Universal do Reino de Deus que distribuía periódicos com calunias e difamação e com o uso de imagens de crianças do candomblé intituladas “Filhos do demônio”. A grande mídia só documentava por uma disputa de audiência e não pela causa, era Rede Globo versus Record. Jornalistas como Carlos Nobre, Tim Lopes, Chico Alves e outros, esses sim faziam um trabalho jornalístico informativo.

 


Os terreiros eram alvos de depredação e invasão. Quem usasse adereços significantes aos seus orixás, vodus e inquices como turbante, fio de contas e roupa branca eram apedrejados, espancados e surrados com a bíblia para “expulsar demônio. A igreja Universal lançava livros ensinando como vencer o “maligno” que era a religião de matriz africana. A igreja católica até teve um posicionamento, fez um manual para ser distribuído pelo departamento de Ecumenismo, mas ficou em alerta após o episódio conhecido como “o chute da santa”.


Foto da Internet 

 

Abdias do Nascimento já publicava sobre o assunto, enquanto deputado federal todas as sessões do congresso eram abertas com a frase “Sob a proteção de Deus” e Abdias iniciava seus pronunciamentos com “Sob a proteção de Olorum” e sempre que podia incluía referências as divindades africanas. Os negros foram os que mais sofreram na ditadura militar, foram vítimas de arbitrariedades e desgraça econômica. Na campanha pelas “Diretas Já” o amarelo foi a cor escolhida pelo movimento pluripartidário e Abdias para realçar o protagonismo da comunidade negra e da matriz africana invocava que vestissem o amarelo de Oxum.

 

Abdias do Nascimento - Foto da Internet


São relatados vários projetos e luta pela valorização o negro, pela sua existência e humanidade como por exemplo a Eco-Afro Rio 92 que demonstrava a visão ecológica da cultura Negra para a sociedade ignorante e preconceituosa que tentava impedir oferendas em áreas ambientais.

 

Pelo livro me sinto a vontade de dizer que professor Jayro é um homem destemido.  Na cara dura foi ao Jornal O Dia para falar do projeto Tradição dos Orixás e o jornalista  que acompanhou o grupo  extraiu 7 sete pontos de sua vivência: 1) Se defender dos ataques físicos e simbólicos dos evangélicos 2)Emponderar os participantes e mostrar o valor civilizatório da religião 3)Valorizar o papel dos sacerdotes enquanto construtores de conhecimento 4) Se proteger das “gangs pentecostais” que agiam coordenados  e armados,  invadiam, intimidavam e quebravam objetos ritualísticos do terreiro 5) A figura do professor Jayro como provocador do movimento negro  que muitas vezes incorporavam o pensamento do colonizador 6) Debater sobre os religiosos que eram também responsáveis pelo preconceito dirigido a sua religião. 7) A tradição africana é uma luta antirracista.

 

Professor Jairo Pereira


A resistência aos ataques até então não era uma pauta com visibilidade dentro do movimento negro, não se debatia que a intolerância religiosa é racismo religioso. Há um depoimento de um integrante do grupo Tradição onde ele analisa a Marcha contra a intolerância religiosa e relata que mesmo com várias religiões na marcha, o Candomblé é que toma pedrada na cabeça, tem seus espaços sagrados invadidos.


  Nas suas articulações frequentou o IPCN (Instituto de Pesquisa das Culturas Negras) na tentativa de chamar a atenção para incorporar esses conflitos nas manifestações do centenário da Abolição. Não ficou satisfeito com o retorno, fundou o IPELCY (Instituto de Pesquisas e Estudos sobre Língua e Cultura Yorùbá) e com a chancela de Instituto, passara a dialogar com o movimento negro e outros grupos institucionalizados.

 

O protagonismo era concedido aos líderes religiosos como Íyá Beata de Yemonjá, Íyá Meninazinha de Oxum Íyá Palmira Navarro e Íyá Wanda de Omolu. As reuniões ocorriam nas casas de terreiro que eram verdadeiros pedaços da África na baixada fluminense. O projeto foi considerado um grande ebó que permitia um olhar decolonial pra a situação vivida pela comunidade negra. Os terreiros eram escola de formação para enfrentar a “guerra santa” inventada pelos evangélicos. Muitos militantes se descobriram enquanto negro, se aproximaram da comunidade negra, fizeram uma revisão das próprias vidas e se iniciaram no candomblé.

 

Foto da Internet


Fazer a esquerda debater questões da religião de matriz africana foi um desafio que fez o professor colecionar tensões principalmente com a ala cristã. A exemplo disso temos a então Vereadora Benedita da Silva que era liderança da Associação de Favela do Rio e que rompeu a articulação com a temática. O grupo recebeu apoio de diretórios universitários e tiveram a presença de Chico Mendes no I Encontro do Tradição dos Orixás.


Foto da Internet 

 

Frei David que é um dos mais importantes debatedores na causa racial dentro da igreja católica foi muito criticado e visto com muita desconfiança. Havia o receio de uma inculturação, um novo colonialismo da igreja católica que estava usando elementos da cultura afro-brasileiras em cerimonias religiosas. Poderia ser, mas uma tentativa de descaracterizar a cultura afro trazida pelos escravizados.

 

O professor não poupava críticas aos adeptos da religião de matriz africana e chamava para reflexão os que tinham comportamento ocidentalizado com uma dominação colonial. Debatia sobre visão a dualista de existência como a arena do bem e do mal. Criticava práticas “inventivas” de lideranças que individualizam e centralizam tudo na própria pessoa e não enquanto patrimônio civilizatório e quando ocorre morte do líder o terreiro acaba. Uma outra critica é a do “monopólio de conhecimento religioso” e citou o exemplo o ritual fúnebre do Axexê que se encontrava centralizado nas mãos de poucos sacerdotes.  Parecia ser uma reserva de mercado já que esses serviços litúrgicos se tornaram lucrativos. O que o professor pondera  que tal pratica vai contra a todo o processo civilizatório africano que é a de transmissão de conhecimento.

 

Se tratando de literatura o que tinha disponível na época eram escritos de pessoas brancas e até mesmo euporéias como Pierre Verger, hoje temos uma gama de escritores negros falando sobre a civilização negra. Um livro indicado para a compreensão do afrocentrismo diaspórico é o livro de contos da Mãe Beata de Yemonjá chamado Caroço de Dendê - a sabedoria dos Terreiros.


Mãe Beata de Yemonja


O mais importante era o entendimento da religião de matriz africana e o espaço do terreiro sob o aspecto civilizatório e como espaço antirracista. O oráculo foi usado na função original e os processos desencadeados pelo grupo o seguiam. Quem respondeu foi Sàngó, segundo Mãe Meninazinha seria ele o patrono dessa jornada. A função ontológica do oráculo é organizar, dar direção. Terreio é espaço de visibilidade de visão de mundo Africano, é lugar de pedagogia.

 

Para pensarmos o hoje, devemos nos reportar ao nosso passado. Para Jayro o projeto Tradição dos Orixás é uma experiência viva na qual seus integrantes compartilham memórias, experiências e ideias. 

Foto da Internet

 

O terreiro é o principal lugar de referência de tradição africana, para além da ritualística religiosa. A ancestralidade deve ser reconhecida como caminho de organização de vida e de existência, restituindo assim, o modelo de racionalidade que valoriza o “nós”.

Leiam o livro!






09 julho 2020

O livro da Saúde das Mulheres Negras – Nossos passos vêm de longe

Roseane Corrêa
Estamos no mês de julho, mês das mulheres negras, ler esse livro me fortaleceu, não estou só. Cada texto traz contribuições para repensarmos a saúde das mulheres negras. São elas acadêmicas, líderes religiosas, líderes comunitárias, mães, filhas, moradoras de rua, escritoras, parteiras, um universo amplo de mulheres que tem muito a nos ensinar. 


Os textos são do meado dos anos noventa início do SUS e sem política de cotas o que tornou a leitura mais interessante. Percebe-se que a estrutura racista não é a mesma. O racismo se atualiza conforme o tempo e o contexto social, como por exemplo, não havia política de cotas, hoje ela está em vigor, então para impedir que a população negra usufrua do seu direito a reparação histórica, o racista se tornou o principal fraudador desse direito conquistado.


O texto de Mãe Beata é bem pessoal, fala de si, de como nasceu nas águas e se tornou Beata de Yemonjá. A trajetória de um batismo compulsório até sua iniciação no terreiro de Alaketu, é sobre a família o amor e as dificuldades vividas. Uma das nossas maiores líderes religiosa, pilar em nosso processo civilizatório enquanto comunidade de terreiro. Mulher forte, decidida e muito crítica. Hoje é nossa ancestral, temos a obrigação moral de honra-la e praticar os ensinamentos por ela deixado.

Mae Beata de Yemonjá - Foto da internet

O objeto analisador do livro é a saúde, mas em toda a escrita percebe-se o amor como eixo de ligação. Amor esse, que é estruturalmente negado a mulher negra em quase todos os âmbitos de sua existência, mas que em resistência o (re) construímos ao nosso modo, dentro de nossas possibilidades, com base nossas raízes ancestrais.

A ineficiência do estado e das políticas públicas devido o racismo estrutural coloca as mulheres negras (até hoje) na base da pirâmide social. O termo interseccionalidade não foi usado na época, mas o texto que conta a história de Lélia Gonzales destaca que ela já citava diferentes opressões que podem atravessar a existência da mulher negra, Lélia enfatizava a importância do debater além do racismo o sexismo, machismo e homofobia e pagou um preço caro por isso, muito caro, mas Lélia não se calou.

Lélia Gonzales - Foto da Internet


Para muitas mulheres negras o algoz pode estar em seu ambiente familiar ou nas amizades próximas. Se dedicam integralmente a família e sofrem violência física e psicológica dentro de casa. Aconselhou-se compartilhar a sua dor, denunciar, não é "normal", não "faz parte da vida" ser submetida a violência doméstica.  O mapa de violência da ONU de 2015 apontou um aumento de 54% de homicídios de mulheres negras, no mesmo período, os homicídios de mulheres brancas caíram 9,8%. Se souber de mulheres negras que estão sob violência, denuncia e apoie a vítima.

No terreiro de candomblé e umbanda que muitas renasceram e tantas se fortalecem. Chegamos ao Brasil com a liberdade confinada, maltratadas, acotoveladas nos porões dos navios negreiros, mas as raízes africanas estavam em nossos corpos e não foram removidas, nos multiplicamos, crescemos e demos frutos. O corpo da mulher negra é da transa e do transe.

Alice Walker - Foto da internet 

bell hooks salienta: o amor cura. A autora volta na história pra entender por que muitos apresentam dificuldade de amar e nos lembra que os nossos ancestrais foram tolhidos de toda e qualquer forma de vínculo afetivo a seus iguais, filhos vendidos, amantes, amigos, companheiros apanhando sem razão. Todo um histórico de violência física como punição e correção que acabamos por reproduzir em nossos lares e com nossas crianças. Meninos negros são ensinados a não chorar e a não demostrar sensibilidade. No tempo da escravidão que mostrasse sensibilidade nos momentos de castigo, era torturado ainda mais. Não demostrar emoções tornou-se um hábito de sobrevivência a brutalidade racial. No pós escravidão, a extrema pobreza obrigava a separação familiar e a separação de comunidades. Aqui no Brasil foi (é) muito comum que meninas pequenas serem entregues a outras famílias para ter o que comer, algumas outras autoras que estão do livro relatam que passaram por essa situação. Além do trabalho análogo a escravidão desde a terna infância, a violência sexual a menina negra foi (é) uma das maiores barbáries a infância preta. Por favor entendam a “novinha” não está pronta, é só uma criança.

Vilma Reis - Foto da Internet


O feminismo é um movimento de mulheres muito importante, mas negligência as pautas das mulheres negras. A universalização das mulheres silencia e oprime. Então o feminismo negro e outras coletividades de mulheres negras ganham destaque.

O corpo da mulher negra é território que por muitas vezes é explorado de forma inadequada. A mulher negra gorda está submetida a uma hierarquização entre as mulheres, uma cultura que leva a exclusão social. A esterilização compulsória, química ou cirúrgica, como controle populacional para a mulher negra pobre. Viver com câncer para muitas é sofrer com a falta de empatia do profissional que lhe assiste. O aborto quando feito na clandestinidade leva ao adoecimento, é um problema de saúde publica, o investimento em educação e saúde reprodutiva não chega de forma eficiente nas comunidades mais pobres, e não podemos esquecer a mulher negra tem o direito de decidir. O mioma uterino e a histerectomia total que é mais realizada em mulheres negras, muitas não fizeram o tratamento adequadamente por falta de orientação. O crescente encarceramento feminino leva a outras violências punitivista. A dor do luto tem que ser vivida e não suprimida como muitos esperam, mulher negra não tem que ser a guerreira o tempo todo. Mulheres negras profissionais da área de saúde são vítima constante de ataques racista associado a falta de credibilidade em sua capacidade técnica, uma Enfermeira denuncia que a profissão, majoritariamente negra e feminina, é desvalorizada e discriminada pela maioria dos médicos e sofrem rejeição dos pacientes.

Lucia Xavier - Foto da internet 

As histórias de superação são inspiradoras. Dona Hildézia que foi para o Rio de Janeiro em busca de melhores condições de vida e foi uma das co-autoras do Manual Cidadania Etnia e Raça em 1998, Luiza tem o melhor período de sua vida enquanto funcionária da prefeitura e integrante de um grupo de Mulheres Negras que trabalha na educação em saúde, questões raciais e direitos reprodutivos. Leci Brandrão e sua música revolucionária que a mídia chamava de radical por falar sobre as desigualdade e apontar a situação de mulheres negras como a dona Deolinda, que foi inspiração para uma de suas musicas, líder do Movimento sem Terra que fora algemada e em um camburão encaminhada a uma casa de detenção por lutar por justiça social.

Leci Brandão - Foto da Internet 

Josina da Cunha, uma das organizadoras do grupo CRIOLA, nos anos noventa usou a estética negra como forma de emponderamento, ela foi estudante de letras nos anos 60 na UFRJ, foi uma das poucas professoras negras da rede municipal a falar de questões raciais, mesmo sem apoio da diretoria, questionava os materiais didáticos que não incluíam a historia do povo negro. Nós que hoje temos a lei 10.639 temos muito que agradecer a essas mulheres que vieram antes de nós.

Nossos passos vêm de longe.



Jurema Werneck - Foto da internet






03 julho 2020

Literatura Negro-Brasileira

Roseane Corrêa

O livro é uma reflexão sobre a presença do negro na literatura brasileira que é influenciada pelo racismo e pela ausência do processo de transição do ex-escravo/liberto para cidadão. Tendo a língua portuguesa como língua madrastra, os africanos sequestrados para trabalhar em sistema de escravidão no Brasil  mantiveram a sua língua mãe nas comunidades de terreiro e Quilombos em forma de resistência.


Na literatura dificilmente se documenta a resistência e as conquistas da população negra. Sob o domínio político e cultural de Portugal a literatura brasileira também foi influenciada. Os escravizados e seus descendentes são utilizados na temática literária pelo viés do preconceito e da comiseração sem complexidade ou humanidade. 

Foto da Internet

 

O desejo de uma sociedade branca fazia com que os mestiços negassem a identificação enquanto negro e a brutalidade da violência colonial foi transformada em aceitável e necessário, foi pura “necessidade de mão de obra”. 

 

A antropologia, sociologia e a literatura no Brasil, foram construídas no signo do racismo. Afloravam as manifestações folclóricas dos negros e indígenas, mas não documentavam seus conflitos. Os abolicionistas eram contra a escravidão, mas não eram antirracistas, o pós-abolição na literatura não descrevia a humanidade do negro, a discriminação racial é arma de ataque contra negros na luta por dinheiro e prestígio.


            O negro quando escreve se torna protagonista de sua existência e tem a possibilidade de apontar as contradições e consequências do preconceito, todavia a formação do escritor não é tão simples, inclui diferentes elementos que a torna caro como por exemplo o acesso a alfabetização,  educação formal, acesso a cultura, idiomas, isolamento físico, pesquisa, equipamento de escrita entre outros que em um país de desigualdade racial onde o negro tem desvantagens sociais e econômicas muitas vezes o inviabiliza grandes e talentos. Assim como o escritor, o leitor negro é um grande provocador de mudança.

Foto da Internet

 

Cuti abre um debate relevante: Negro ou afro ou tanto faz?

 

É notório que há uma tendência de eliminação do personagem negro que ou morre ou a descendência clareia. A evolução do negro no plano ficcional só pode ocorrer no sentido de tornar-se branco pois a “afro-brasilidade” pode sobreviver sem o negro. 


Na hierarquização cultural desvaloriza-se o que vem de África. A estratégia de usar o Afro-brasileiro ou Afro-descendente pode ser lida como uma tentativa de desqualificação e na literatura soa como se fosse um apêndice da literatura africana, como se só aos autores brancos coubessem compor a literatura do Brasil. 


Atrelar a literatura negro-brasileira a literatura africana é estratégica para não questionar a realidade brasileira pois literatura africana não combate o racismo brasileiro e não se assume como negra.

Foto da Internet

Estrangeiros foram os primeiros que fizeram estudo sobre a presença do negro na literatura e o branco escrevendo sobre o negro minimiza a identidade negra, então a palavra “negro” era destinado aos que perderam a identidade original. O esforço para silenciar a identidade negra perpassou séculos e atingiu o século XXI.


Ser escritor afro-brasileiro ou afro-descendente não precisa necessariamente ser negro ou negro-brasileiro, é importante lembrar que quem não carrega no corpo a herança africana o racismo não o atinge, ser “neto, descendente, bisneto...” de negro e não ter traços negroides, o distancia da verdadeira experiência de ser negro no Brasil. 


Quando lemos “poeta negro”, Movimento Negro”, “Frente Negra Brasileira”, “Noite da beleza Negra” sabemos bem qual a descendência e quem é o interlocutor e com certeza não são os “branco só de pele”.

Cuti

A estética do embranquecimento é muito presente na literatura, argumentos como “cultura não tem cor” é sinônimo de apagamento das contribuições negro e indígenas.


Podemos até achar que escolhemos o que lemos, mas não é bem assim, existem vários filtros e muitos deles não tem a presença do negro e são comandadas por pessoas brancas como o mercado editorial, a linha editorial. o tradutor, o professor, o jornalista, o crítico, os responsáveis pelas escolhas dos livros escolares, os que votam as leis, os donos das livrarias, a publicidade, o biblioteconomista.


A literatura brasileira escrita por brancos que não tem o zelo com a história negra  pode  reforçar os estereótipos de vida cotidiana, impedir a autoestima do africano escravizado e de sua descendência, pode tenta impor uma harmonia, questionamento ou resistência negra descrito como ameaça, promove ideia de inferioridade racial, desajustamento psíquico e moral, características avesso a beleza, sexualidade desenfreada e paradoxalmente ingênua e passiva. Tudo faz parte de uma construção para justificar a miserabilidade da população negra. Um outro autor resumiu essas caracterizações em: a bela mulata, o negro fiel e o escravo sofredor.


Personalidades notórias como Luiz Gama, Cruz e Souza, Lima Barreto e Maria Firmina Reis, escritores negro-brasileiros, os primeiros a expor seu desconforto ao preconceito racial e a reivindicar a identidade negra. Luiz Gama por exemplo foi o primeiro escritor negro a declarar amor a uma mulher negra. Cruz e Souza flagrou a aversão que os não negros tem com a questão de cor dos Africanos e de seus descendentes. Lima Barreto tem momentos explosivos de indignação, ele identifica o racismo e não se rende. Maria Firmina dos Reis consegue na época mesmo usando narrada pelo prisma de uma senhora branca abolicionista, humanizar o negro.

Foto da Internet

Há autores negros que não se apresentavam como tal, adotavam uma linguagem “neutra”, como um processo de auto-censura, o reprimido agindo contra si mesmo.


O medo de vingança do negro é alimentado no imaginário popular através de violências protagonizada por negros, não é lido como resistência.


Em uma sociedade multirracial, todo mundo participa da discriminação: como vítima, algoz,  omisso e complemento, como antirracista também.


Escrever um personagem negro exige estudo e preparo para evitar descrever caricaturas, sem humanidade, sem expressividade apenas como adereço do personagem branco ou parte de um cenário, um enfeite, um utensilio doméstico, sem função, sem histórias, sem parentes como se tivessem surgidos do nada, praticamente uma continuidade a destruição familiar realizada pelo colonialismo. O escritor que não estudar fica refém da ingenuidade e da forca da ideologia racista.


Por fim ele chama a atenção que o racismo não da trégua nem para crianças e fala da importância da Lei Nº 10.639/2003 e a literatura que chega nas escolas são escritas por brancos adultos que podem ter posturas ideológicas comprometedoras.

            Leiam o livro!

Cuti