Livro escrito para Stefania, a mãe de Scholastique Mukasonga. Uma mãe que tinha uma ambição: ter seus filhos vivos. Scholastique Mukasonga é uma escritora Tutsi sobrevivente do massacre de Ruanda o qual exterminou a sua família em 1994.
Ruanda é um país que fica no centro da África. Ficou conhecido devido ao genocídio. Composto por três etnias principais Twa, Hutus e Tutsis. Os Hutus eram maior número e eram agricultores e os Tutsis eram ligados a agropecuária e com isso maior poder econômico. Colonizada inicialmente pela Alemanha, o controle passa os Belgas. Os Belgas incentivaram rivalidades entre as duas etnias usando o argumento da hierarquia de raça. Alegavam que os Tutsis eram superiores porque tinham traços mais próximos do Europeu. A largura do nariz era um dos elementos usados para justificar a superioridade dada aos Tutsis, pois era de uma estrutura mais fina. Os Belgas ofereceram escolarização aos Tutsis através das missões católicas e chegaram a escravizar os Hutus. Algo que não existia foi implementado: a obrigatoriedade nomenclatura da etnia nos documentos oficiais.
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Rivalidades políticas e econômicas entre as etnias foram alimentadas. Após queda de um avião em 1994, onde estava o presidente que iria assinar um tratado de paz, foi o estopim para o massacre. Há quem diga que o massacre ja estava planejado antes do acidente. Milícias foram formadas, vizinho matava vizinho e os militares tentavam exterminar os Tutsis. Norte Americanos, Franceses e Belgas, cúmplices reais do massacre deram as costas para a situação.
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A autora escreveu uma trilogia sobre o genocídio e esse livro é o que resgata a memória de seus ancestrais, os costumes e as tradições do seu povo.
Expulsos de suas terras, sua mãe Stefania, as três filhas mulheres, os dois filhos homens e o marido foram viver em uma área de refugiados e tiveram que adaptar as suas tradições. Stefania tinha certeza da morte precoce e sua vida mudou completamente. Passou seus últimos meses de vida criando estratégias para manter os filhos vivos. Para si mesma só tinha um desejo: que seu corpo fosse coberto por um pano em caso de sua morte.
A autora é a única sobrevivente da família pois não estava lá no dia do massacre e não pode cobrir o corpo de sua mãe com pano e decidiu cobrir o corpo com palavras. Em memória da sua mãe livro foi escrito.
Stefania temia o adiantar da morte de seus filhos pela violência a qual a sua comunidade estava sendo submetida sistematicamente. Sem a presentesão de fazer falsa simetria, a cada 23 minutos morre um jovem negro no Brasil, as nossas mães pretas também vivem a angústia de uma possível morte precoce dos filhos .
A estratégia colonial para adiantar a morte foi parecida da que foi usada com os negros no Brasil. Ao fim da escravidão negra brasileira, impediram que os ex escravizados/libertos e seus descendentes tivesse acesso a terra, educação, trabalho livre remunerado ou qualquer assistência/reparação/indenização. Esperava-se que os negros morressem de alcoolismo e fome. Em Ruanda a etnia Hutus removeu os Tutsis para uma área remota para que fossem dizimados por doenças como a do sono, para que morressem de fome, além das repressões militares que resultavam em mortes violentas. E como no Brasil, apesar dos pesares, os tutsis sobreviveram. O que os colonizadores subestimam é que o processo civilizatório africano é pautado na solidariedade e comunidade.
Os militares lembravam aos Tutsis que eles não eram mais humanos, e foram apelidados de "barata". Suas vidas eram descartáveis. Invadiam as casas, saqueavam, aterrorizavam os moradores, quebravam objetos. Uma das lembranças relatadas pela autora, foi um dia em que a família havia terminado o jantar e estavam sentados em suas esteiras ouvindo um irmão ler um livro e pai rezar o rosário. De forma inesperada três soldados entram na casa, pisaram na comida, bateram em alguns membros da família, destroíram a mobília e em sequência foram para as casas vizinhas fazer o mesmo. Me faz lembrar dos relatos dos moradores de favela do Rio de Janeiro e as operações policiais. Com o álibi de que estão procurando drogas, invadem as casas, quebram o podem, agridem quem estiver à vista e matam a esmo.
O projeto de vida de Stefania era salvar seus filhos. Cavava os buracos nas tocas de tamanduá para que as filhas menores se escondessem, ensaiava as rotas de fuga, estocava a tão escassa comida. Sempre aperfeiçoava os planos de sobrevivência. O exílio para outro país, ela e o marido não cogitavam, era como se eles tivessem decididos morrer em Ruanda.
O alimento não era só pra nutrir o corpo, era um gesto de amor das mães. Ter filhos era motivo de muito orgulho e realização se transformou em temor. Havia uma vizinha mãe de 7 filhos, que deveria ser a mulher mais realizada do mundo. Mas seus meninos poderiam ser mortos ou convocados para a milícia a qualquer momento e essa mãe estava mergulhada em tristeza profunda. As mães de meninas viviam sob o pesadelo do risco do estupro coletivo o que é uma pratica em situações de guerra.
O livro fala sobre como branco interferiam na cultua Ruandense com as missões católicas. A busca da “civilização” através da igreja. Todos tinham que ser batizados, trocar de nome, não podiam trabalhar aos domingos, roupa, penteados tudo recebia a tentativa de "embranquecer". Os costumes e tradições que ocorriam dentro e casa foram as que sofreram menos influência, assim como moradores de área remota onde os Missionários não tinham construídos uma base.
O cultivo da terra era uma tarefa árdua, mas com vários propósitos. Eram de onde tiravam alimentos, eram onde plantavam ervas medicinais, era o momento em que as mães passavam para os filhos os segredos das tradições. Cultivavam plantas para atrair prosperidade. A autora relata que se surpreendeu ao descobrir que batata-doce, o milho e o feijão eram oriundos das Américas.
Na literatura descrevem as mulheres Tutsi como dona de casa que faziam cestinhos para turistas e manteiga.
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Contudo a autora se recorda das mães sempre com uma enxada na mão e os filhos nas costas. Trabalhos de campos intermináveis.
O sorgo tem o seu destaque. Cultivado em uma área exclusiva, é o alimento legítimo ruandês. O rei das plantações. Com ritual próprio e grandes festejos na coleta, o grande talismã contra fome, contra calamidades e sinal de fertilidade e abundância. Mukasonga aprendeu o cultivo com a mãe.
Sorgo |
Umuganura é o nome da festa pós coleta e da massa do sorgo. Por ser uma festa familiar onde nem os vizinhos participavam, muito foi preservado da influência dos missionários que não tentaram cristianizá-la. Crianças tinham a honra de colher as espigas, mas não podiam ser filhos bastardos, doentes, franzinos ou com problemas físicos. Não podiam usar panelas de metal, mas sim potes de cerâmica. Evitavam utensílios introduzidos pelos brancos. Todos da família deveriam comer, cantar e dançar em honra do sorgo.
Mulheres, homens e crianças, todos tinham funções específicas. tudo era feito em e para a comunidade. De tudo que se produzia com o sorgo, a cerveja era o mais esperado. Hoje substituída pelas marcas Primus e Amstel, a cerveja de sorgo é descrita como bebida de velho. Mas em torno jarros de cerveja de sorgo, laços de familiares se fortaleciam, conflitos eram resolvidos, casamentos negociados, vizinhos confraternizavam.
Com tratamento médico limitado e precário, crianças e idosos acabavam morrendo de diarréia. O tratamento com os saberes tradicionais ajudava. Stefania não era uma curandeira clássica, mas como uma boa mãe, tinha suas recitas. Conseguiu plantar alguma coisa em casa, mas nada comparável ao que era antes da deportação. O alimento de riqueza suprema que sentiam falta era o leite. Tomaram suas terras, assassinaram o gado e os veados, queimaram os estábulos.
Ao nascer as crianças passavam por um ritual e então eram reconhecidas e acolhidas como irmão da comunidade e deveria ser protegido por todos. No final do ritual, as crianças maiores se sentavam no chão e estendiam o braço para receber o bebê em seu colo que era passado de mão e mão. Dessa forma ele era adotado por todo o vilarejo. A autora não recebia bebês em seus braços pois segundo sua mãe era estabanada.
Na missa era ensinados que Deus proibia trabalhar aos domingos e se não obedecessem, ele surgiria por cima de nuvens negras, ardendo de cólera e rodeado de línguas de fogo. Então Domingo de manhã iam pra igreja e as tardes cuidavam da beleza. Catar piolho era um ritual feito nos quintais das casas, encontros apenas com as mulheres. Na maioria das vezes não tinha piolho, mas era o momento em que os dedos maternais percorriam as cabeleiras com afago. O racismo se articulou para transformar esse momento em dor, afirmando que o cabelo crespo era ruim. Pentear os cabelos foi transformado em uma batalha para se adequar a aceitação social. No livro é explicado o amor que é transmitido de mãe para filha no momento dos cuidados dos cabelos.
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Amasunzus eram penteados geométricos que significava que a moca estava na idade de casar e buscava um marido. O cristianismo condenava a tradição e proibia o uso de penteado que poderia atrair os meninos. O urugori, um arco que perdia o cabelo das mulheres, era um símbolo de fecundidade, benção para as crianças e para a família. O alisamento do cabelo com ferro quente então se torna padrão, mas o equipamento ne todas tinham e chegavam a passar ferro de roupa no cabelo para se encaixar no padrão.
Foto da internet: Urugori |
Foto da internet: Amasunzus |
O estupro coletivo foi uma tecnologia de opressão e era assunto proíbo. As mulheres mudaram a tradição e passaram a acolher a vítima da violência e seus filhos. Não sabiam que status dar a essas mulheres pois não eram mocinhas e nem casadas então as vítimas recebiam o status de viúvas.
Ruanda é o país de Mães-coragem.
Scholastique Mikasonga |
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